«Nos últimos tempos, perguntava-me porque o odiavam tanto. Afligia-o saber
que o detestavam, não compreendia que não gostassem dele», dirá.
Durante décadas, a bailarina e atriz fora a ponte entre Salazar e os astros,
quem diria. O ditador mantinha reserva sobre essas consultas, mas esperava
pacientemente que Maria Emília estudasse os mapas, ouvia de forma religiosa
os seus pareceres e apreciava a sua palavra em decisões importantes. Isso,
porém, não significava que a seguisse.
A astróloga, alertada por perigosas conjugações planetárias, chegara a
recomendar-lhe que abandonasse o poder e fugisse para a Suíça, mas Salazar
relativizava a influência das ciências ocultas nas decisões pessoais e de Estado.
Acamado e esquecido, bem necessitado estivera de favores esotéricos,
pudessem eles. Na última estação da existência, o acompanhamento médico era
permanente, com escalas de 12 horas para cada membro da equipa clínica. Os
cinco especialistas que vigiam e tratam de Salazar dormem alternadamente
numa cama instalada no chamado «gabinete de despacho». Partilham as
refeições com a governanta, que os mima com bolinhos de bacalhau e arroz de
tomate, além de outros cozinhados que ficam no palato e na memória.
Para os clínicos, três deles com ligações ao PCP, Salazar é um doente igual
aos outros, «igual a um desses ricaços que podiam ter médicos em permanência
e aparelho de hemodiálise em casa», mas ao qual não poupam comentários
sarcásticos: «Como está hoje o nosso PBX?», ironizam, entre eles, referindo-se
ao emaranhado de fios que mantinha o ditador vivo.
Há neles um sentimento de pequeno ajuste de contas, não com o doente, mas
com quem o pretende visitar. Durante o trabalho médico, divertem-se a enxotar
o cardeal Cerejeira ou a limitar os movimentos do secretário Paulo Rodrigues.
Ao doente, «já ninguém lhe ligava», dirá um deles. «Toda a gente desejava que
morresse. Era um corpo mantido vivo artificialmente, que estava a empatar o
sistema.»
A 15 de julho, Salazar sofre uma grave «doença infeciosa». O quadro geral
agrava-se: os órgãos vitais cedem, só o coração ainda resiste. O doente é sujeito
a um tratamento de hemodiálise e espantam-se os médicos com o seu apego à
vida. Mas logo se anunciam perturbações cardiovasculares e problemas renais.
Salazar volta a ser notícia no País. «Tanto conviveu com Deus e Deus não se
lembra dele!», escreve Eduardo Coelho, médico pessoal do doente no seu
diário.
No domingo, 26 de julho, Salazar entra praticamente em coma, afetado agora
pela formação de um edema pulmonar e sinais de pneumonia. A consternação
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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