A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Depois do adeus


A manhã de 27 de julho de 1970 despertara com um convidativo sol de
verão. Mas para lá dos muros brancos e altos do palacete de São Bento a
luminosidade não penetra nas almas que rodeiam a cama onde Salazar
permanece imóvel.
O doente passara a madrugada sem sobressaltos de maior, mas a cada arrastar
de horas vão cessando no seu corpo as funções vitais.
Pouco depois das oito, retomara-se a rotina: o pessoal doméstico afadigado
com as primeiras tarefas do dia, o médico de turno aguardando a chegada dos
clínicos Eduardo Coelho e Jacinto Simões para a visita habitual. De um
momento para o outro, todos o sabem, de Salazar já não restará um suspiro.
Às oito e meia, Bissaya Barreto entra na moradia, saudado pelos presentes.
Como acontecia quase sempre nas suas deslocações a Lisboa, dormira no Hotel
Metrópole e levantara-se cedo. Dirige-se à cabeceira do doente. «Até sexta,
António», despede-se pouco depois, estendendo as mãos. Salazar mexe apenas
os lábios, sem que se perceba um sopro. Ditador e clínico encontravam-se
quase sempre ao fim de semana e era habitual Bissaya jantar na residência
nesses períodos.
O cirurgião deixa São Bento minutos depois, dirigindo-se apressado para a
estação de Santa Apolónia, onde o «rápido» das segundas-feiras para Coimbra
nunca parte sem ele. «Ainda tem um palminho de vida», comenta, sobre
Salazar, com alguém das suas relações, à entrada para a carruagem.
Perto das nove da manhã, anda-se em bicos de pés no quarto do primeiro
andar da moradia de São Bento. Na penumbra, movem-se rostos como
sombras, sussurrando ou em silêncios cerimoniosos.
Junto da cama, os médicos, o prior da freguesia da Estrela, padre Tobias
Duarte e Maria de Jesus. Em volta, Maria Carlota, sobrinha do enfermo, as

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