A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

vergada pela dor, chorara boa parte do tempo sentada na beira da cama do seu
quarto, incapaz de tomar decisões.
Marcello Caetano viera pouco antes das 11 horas, de gravata preta, e antes do
primeiro sinal público de luto nacional.
Américo Tomás, de visita oficial a São Tomé e Príncipe, cancelara os
compromissos e iniciara o seu regresso a Lisboa.
São Bento tornara-se um redemoinho de limusinas pretas, vaivém de gente
importante do regime.
Os amigos de Salazar põem e dispõem: amortalham o corpo do falecido com
trajes e insígnias que não lhe pertencem. Na confusão, perdera-se o tino ao
local onde se encontram a capa e batina do antigo mestre de Coimbra e as suas
«divisas» do doutoramento, presumindo-se que estas últimas existiam. Diante
de um cadáver de vestes alheias, celebra-se missa de corpo presente.
«Eu era forte, mas emagreci uns quantos quilos», recorda Rosália. «Tocavam
três e quatro telefones ao mesmo tempo, foi uma coisa louca, um desassossego.
Não houve tempo para nada, muito menos para comer e dormir. Foi uma
balbúrdia. Mas naquele momento também ninguém tinha apetite...»
À hora do almoço, o Conselho de Ministros decreta três dias de luto
nacional, suspende espetáculos públicos até ao dia do funeral, que esperará
pelo regresso do Presidente da República. Os jornais esgotam edições atrás de
edições, num contínuo de palavras sobre Salazar, de Pio XII a Churchill, de
Franco a Konrad Adenauer, todas datadas, mas à mistura com telegramas,
mensagens, declarações emotivas que vão sendo reproduzidas. Para o palacete
convergem lamentos oriundos de várias latitudes e patentes, flores e uma coroa
de cravos, impossível de ignorar pela sua dimensão, enviada por Amália
Rodrigues.
O Presidente do Conselho fala ao País pela rádio e televisão.
Faz o balanço da gestão política do homem que o antecedeu, referindo-se ao
«saldo positivo enorme», mas lembrando, contudo, que quase quatro décadas
de governação «não podem decorrer sem sombras», pois «governar é
necessariamente descontentar», precisa Marcello Caetano.
Pela tarde, o escultor António Duarte, chamado a São Bento por Eduardo
Coelho, ocupara-se do estudo para a reprodução da máscara do rosto e da mão
direita da ilustre figura extinta. Era um trabalho de minúcia, pois havia o risco
de a pele e os cabelos do cadáver se deteriorarem ao tirar os moldes.
O artista trabalha tendo ao lado, na mesa de cabeceira, dois medalhões de
marfim com as efígies de Maria do Resgate e António de Oliveira, mãe e pai de

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