A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

recordará Costa Brochado, amigo de ambos.
Uma trombose no início dos anos 1980 leva-a ao Hospital de Santa Maria. É
depois internada no Lar João XXIII, no bairro de Alvalade, contra a sua
vontade, pela irmã Rosalina. Aí permanecerá até ao fim dos seus dias. Nunca
se zangara, nem criara engulhos. Não fizera exigências especiais, nem sequer à
mesa. Discreta, dava-se apenas com duas ou três pessoas também internadas no
lar, lia muito, fazia as refeições no quarto ou na sala sem alaridos. Sobre o
passado, sobre São Bento, nem uma palavra. Quem dirigia a instituição só
saberia da sua biografia pela irmã, a quem Maria de Jesus passara procuração
para tratar de alguns assuntos. Mas pagava ela o seu internamento.
Doente, a antiga governanta é algaliada após ser submetida a exames
ginecológicos, por causa de uma infeção urinária crónica. Os responsáveis do
lar terão, nessa altura, confirmado: a caminho dos 89 anos, continuava virgem.
Guardará, até ao fim, uma fotografia autografada de Salazar: «A Maria de Jesus
Freire, muito grato pela sua companhia de sempre, até sempre», escrevera o
ditador.
Na madrugada de 22 de maio de 1981, Maria morre serena e discretamente,
na sequência de uma pneumonia, na cama da casa de repouso onde se
encontrava.
Entre os seus objetos pessoais, guardados com desvelo, encontraram-se
trevos de quatro folhas embrulhados em papel vegetal, uma flor, folhas de
oliveira e um escapulário da confraria de Nossa Senhora do Carmo.
Ao seu funeral, comparecem não mais de 40 pessoas, poucas delas
frequentadoras da moradia de São Bento.
Em vida, a antiga governanta recusara a possibilidade de ser enterrada no
Vimieiro, onde Salazar reservara uma pedra tumular para ela, que havia
sobrado das que mandara fazer para a família.
Maria seria, pois, sepultada em campa rasa no cemitério da Ajuda, em
Lisboa, por imposição da irmã. A morte não diluirá as desavenças com
Rosalina, antes as agrava. Atravessadas décadas em desalinho de afetos e
feitios, Maria fenecera, deixando a distância e o desamor em relação à irmã
lavradas em testamento. Deixaria o apartamento aos frades capuchinhos de
Benfica, enquanto Micas, a concunhada, receberá algumas libras de ouro, peças
de mobiliário e parte do espólio de Salazar. Para a irmã Rosalina, nada. Nem a
bengala.

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