A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Ao regressar a Favaios a rapariga abre finalmente o coração.
Arranja namoro. Durante dois anos, assim anda.
Depois casa e nascem os primeiros filhos.
Ao marido, puxam-lhe as tendências «do contra»: vocifera contra o regime,
não gosta de Salazar nem de quem lhe sucedeu. «Era muito humano, nunca foi
agressivo e respeitou-me sempre, mas tinha as suas ideias», reconhece Rosália,
hoje viúva.
A princípio, o casal chispa por causa das políticas.
O marido tenta catequizá-la para as suas teses, mas Rosália guardara boas
memórias do seu passado recente, onde tivera mais do que sonhara para a sua
condição: «No País, vivia-se pior, eu sei, e o senhor doutor era, para muitos, o
rosto da maldade que havia. Os meus pais eram pobres, não conseguiam dar de
comer a tantos filhos. O senhor doutor bem dizia: livro-vos da guerra, mas não
vos livro da fome. Mas para mim foi sempre muito humano, boa pessoa»,
recorda ela, que nos tempos prévios ao 25 de Abril ainda receberá, em Favaios,
visitas de cortesia de um antigo agente da PIDE, natural de São João da
Pesqueira.
O marido não se resigna. «O meu pai era antifascista, nem suportava ouvir o
nome do Salazar», acode, à conversa, o filho Adelino.
Embora a vontade fosse muita, o marido não chega ao atrevimento de rasgar
as fotografias que a antiga serviçal trouxera dos seus tempos de São Bento,
entre as quais uma, autografada por Salazar. Mas dá rédea solta aos filhos para
brincarem com elas. «Deu no mesmo, rasgaram quase tudo», lamenta-se
Rosália.
A Revolução, em 1974, não apanha a padeira de Favaios propriamente
desprevenida. Já cheirava a esturro, diz.
Nem aí o casal está do mesmo lado.
Ela chora, fica murcha com a notícia.
Ele, músico na banda da terra, «andou toda a noite a trocar trombone, nem
dormiu, felicíssimo».
Rosália ainda teria outro desgosto. «Foi quando mudaram o nome à Ponte
Salazar, fiquei muito triste.»
Socialista até morrer, o marido conseguiria convertê-la com o andar da
procissão democrática, logo que saiu do adro. «Impôs-me sempre a vontade
dele». É ela que diz: «Agora precisávamos de outro 25 de Abril, pois andamos
todos como os feijões chícharos, de rabo virado uns para os outros...»

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