A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

pescoço de forma meticulosa durante várias madrugadas para que nada se
notasse.
Três anos volvidos, a 4 de fevereiro de 1978, uma nova cabeça de bronze,
esculpida por um artista anónimo de Gulpilhares, em Gaia, voltaria a completar
o busto. Mas nem um dia duraria, tendo sido de novo roubada. «O povo exige a
cabeça no lugar», lia-se, na base da estátua, enquanto simpatizantes do ditador
removiam as placas toponímicas da Praça 25 de Abril e da Rua General
Humberto Delgado.
A refrega dessa época entre partidários da reposição da integridade da estátua
e militantes da sua destruição, resultou em dias de alta voltagem. As
bastonadas e tiros da GNR originaram 19 feridos e a morte de uma mulher. Um
atentado à bomba faria mais tarde voar pelos ares o que restava do Salazar de
bronze, que nunca mais seria reposto. No mesmo local, nasceria um outro
monumento, também controverso, dedicado aos ex-combatentes do Ultramar.
Santa Comba Dão é terra que nunca viveu pacificada com a sua memória.
Nem com os seus filhos. Desdobraram-se outras polémicas e intenções que
passariam pela edificação de um museu do Estado Novo, com base num
espólio entretanto cedido por um sobrinho-neto de Salazar, mas o projeto não
reuniu, até hoje, a unanimidade. Ou dinheiro suficiente.
Para trás, ficam insondáveis mistérios.
Um deles, quase lenda, relata o desaparecimento de um exemplar de Férias
de Salazar,
de Christine Garnier, da biblioteca local, por nele se encontrar
inscrita uma dedicatória da francesa para o ditador que seria demasiado
comprometedora.


Quando voltou ao Vimeiro na companhia da família, tudo estava mais calmo.
Descontando as romagens anuais à campa do falecido por velhos e novos
simpatizantes do antigo chefe do Governo, Rosália Araújo demorou a
reconhecer os caminhos por onde passara em tempos idos.
«Onde está enterrado o doutor Salazar?», perguntaram então os filhos às
gentes da terra com quem se cruzavam, enquanto tentavam adivinhar o
percurso até ao cemitério do Vimieiro.
«Práli!», ouviram, com maus modos e gestos bruscos.
«Caramba!», espantaram-se. «Até parece que estamos à procura da campa do
Hitler...»

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