A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Discutira ainda pormenores sobre a descalcificação da água e sugerira o
aproveitamento da canalização velha, «mas em muito bom estado», que a
Companhia das Águas tira da rua e vende quase ao preço de sucata. Na casa de
banho obrigaria a que as portas pudessem «ser trancadas por dentro» e cuidara
de saber se o aparelho de rádio podia ter sinal da antena em duas divisões.
Quanto ao exterior do palacete, o Presidente do Conselho fornecerá
orientações para os tanques de lavar a roupa, o estendal e o pomar.
Nem as dependências da residência escapam ao escrutínio. O motorista seria
obrigado a pagar renda da pequena casa que habitava nos terrenos de São
Bento, e a mesma deveria ser mantida, segundo ele, «no maior estado de
limpeza e arrumação». Nada de barulhos e desordens. Em Portugal como em
casa, paz e sossego.
O regime imposto pela governanta entre portas assemelhava-se ao que
Salazar tratava de aplicar ao País.
Ao cenário não faltava sequer o naco de província, um Portugal dos
Pequenitos que Maria tenta transplantar para os jardins de São Bento, com
hortas, perus, patos, coelhos e galinhas «que eram uma coisa por demais»,
segundo Rosália. A bicharada estava ali para matar saudades e «atenuar o peso
das despesas».
A princípio renitente, e preocupado com os custos de alimentar os animais,
Salazar acabara convencido. A governanta prometera o retorno do investimento
vendendo os ovos ao luxuoso Aviz Hotel – tantas vezes apreciados por
Calouste Gulbenkian – e, já nos últimos anos, à Fundição de Oeiras,
memorizou Rosália.
Com sabedoria e persistência, Maria de Jesus conseguira do patrão a
anuência para a construção de galinheiros, gaiolas e coelheiras, além de um
depósito para a ração e uma cozinha para alimentar os galináceos e roedores.
Rendido, Salazar pedirá ao feitor das suas propriedades de Santa Comba Dão o
envio de «uma galinha boa poedeira», a partir da qual Maria de Jesus preparou
a ninhada.
Mas isso não é suficiente para as suas ambições. Com o tempo, juntará 300
galinhas à criação.
Salazar que, por estes anos, sentirá definhar o regime e as suas capacidades
para governá-lo, receia que a governanta não perceba a precariedade do
momento: «Oh! Mulher, que faz a tantas galinhas? Vai pôr-se à porta da rua e
vendê-las antes de partir?», atira-lhe, tentando chamá-la à realidade, sem
sucesso.

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