A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Apesar de discretas e dissimuladas, as capoeiras da casa e a populosa criação
doméstica não vão passar despercebidas a quem, de visita a São Bento, desfruta
do espelho de água, das árvores frondosas e da imensa variedade de espécies
que compunham a exuberante paleta da vegetação do parque.
Aquele será, do princípio ao fim, «o Reino de Maria», frase cunhada pelo
próprio Presidente do Conselho durante as passeatas pelos jardins, de braço
dado com Christine Garnier, a escritora francesa que aterrou em Lisboa para
preparar um livro sobre o ditador e por quem este, nos anos de 1950, se terá
perdido de amores.
Impressionado com a «tacanhez» do cenário, Costa Brochado, minhoto de
Santo Tirso, preferia a expressão «quintalejo» para designar o enclave rural de
Maria na residência oficial.
O ritmo poedeiro impressionava qualquer um.
Uma prima de Rosália, de visita a São Bento, espantara-se com a quantidade
de ovos saídos da moradia, «talvez uns 500 por dia». Seduzida pelas filas de
cestos carregadinhos, Luzia embrulhara, à socapa, vários ovos num cartucho,
com a cumplicidade da mais nova criada do ditador. «E agora como é que tu
vais sair com isso? A polícia do portão vai revistar-te!», advertira Rosália,
enquanto a familiar enchia os bolsos da gabardina. «Olha, se me apalparem,
faço gemadas!», atirara a outra.
Riram-se as duas.
Luzia, essa, passou incólume e sem que os ovos dessem à casca.


Rosália entrara no círculo restrito da vida doméstica do ditador para cuidar
do Antoninho, o pequeno mais-que-tudo da residência.
Duas crianças, dois destinos.
Uma, à beira dos 14 anos, adulta em construção.
A outra, com metade da idade, tem atrasos e requer especial vigilância.
Recém-chegada ao palacete, novata nas lides domésticas, Rosália é, ao
princípio, dispensada do trabalho duro e passa os dias no jardim, em
brincadeiras nem sempre seguras. «Andávamos em correrias e eu era
destravada de todo. Um dia pus-me em cima da trotinete e espalhei-me ao
comprido. As “estradas” interiores do parque estavam compostas de areão e
entrou-me uma pedra grande para o tornozelo. O Antoninho assustou-se com o
sangue, chamou a madrinha e eu fui parar ao hospital.» A marca ficou até hoje.
As diabruras caem, contudo, no goto do rapaz.

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