A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

A idade da nova criada aproxima-os.
O menino «fala pouco, baba-se muito», mas habitua-se a escolher as
empregadas que mais gosta para cuidar dele. Antoninho prefere Rosália.
«Vestia-o, dava-lhe o pequeno-almoço, o lanche, o banho». A governanta,
madrinha do catraio, lá aparecia, por vezes, a impor rotinas: «Dê um iogurte e
um leite com chocolate ao menino», dizia. Rosália cumpria, «mas ele às vezes
só bebia o leite e comia eu o iogurte». Quando Maria de Jesus passava a
fiscalizar a tarefa, nem dava pela encenação: «Comeu tudo?», perguntava, seca.
«Tudinho!», respondia Rosália, sem pestanejar nem se desmanchar.
Desde que, no final dos anos 1930, inaugurara o renovado palacete, Salazar
fizera jus à sua peculiar interpretação sobre a separação de gastos públicos e
privados. O transporte de mobiliário da sua anterior residência já lhe saíra do
bolso mas, à chegada a São Bento, o Presidente do Conselho leva o escrúpulo a
outros refinamentos.
Recusara, desde logo, utilizar o património do Estado nas áreas que ele
considerava de uso privado. Mandara a governanta empacotar objetos de uso
doméstico e roupas de mesa e cama em armários, no sótão. Algumas
embalagens originais, entregues em São Bento, nem sequer chegaram a abrir-
se.
Por outro lado, o mobiliário do primeiro andar, alguns eletrodomésticos e
utensílios da residência pertencem-lhe.
De julho a outubro, Salazar muda-se para o Forte de Santo António do
Estoril, mas nem aí facilita. A Constituição dizia que ele tinha direito a uma
residência, mas não a duas. Acresce que o monumento nacional pertencia, já na
altura, ao Instituto de Odivelas, dependente do Ministério da Defesa. Mas tudo
se resolverá, sem beliscar o decoro das funções. Salazar irá depositar entre
quatro a cinco contos para pagamento da renda durante aqueles meses de verão.
O valor definira-o ele, com base numa estimativa dos preços praticados nas
redondezas pelas pensões de três estrelas ou hotéis equivalentes.
À entrada dos anos 1960, Salazar ganha 25 contos e continua, como no
início, a pagar do seu bolso as despesas de funcionamento da residência oficial,
com exceção da conta de eletricidade e do telefone inerente à função.
O ditador era friorento e entendia que o Estado não tinha culpa disso,
assumindo assim os gastos com o aquecimento. No escritório tinha sempre, nos
meses de inverno, os pés pousados na escalfeta e duas mantas nos braços da
poltrona: uma para pôr nas suas pernas e outra para as visitas. Quando certo
dia, Silva Cunha, subsecretário de Estado, recusou o gesto de delicadeza do

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