A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

chefe do Governo alegando estar confortável, Salazar insistiu: «Ponha, ponha,
vai ver que o frio vem depois...»
O ditador anota mensalmente todos os valores em pequenos cadernos, dos
jornais ao gasóleo, sem esquecer os gastos com medicamentos, bastante
avultados para a época. O comedimento, a sovinice, a severa recusa de gastos
sumptuosos obrigam Maria de Jesus a uma ginástica olímpica na gestão do
quotidiano de São Bento.
A prática era, aliás, comum a vários ministérios, onde a mais rotineira das
despesas parecia, aos olhos do Presidente do Conselho, uma extravagância. A
desconfiança de tudo e de todos, aliada ao perfil vincado de homem rural, com
o seu quê de calculista, retorcido e manhoso, atalhavam desde logo qualquer
veleidade ministerial relativamente a dinheiros.
Francisco Pinto Leite, que até 1967 ocupará o cargo de presidente da Junta
de Energia Nuclear, deslocava-se com frequência a Viena, na Áustria, em
trabalho. Num dos «despachos» com Salazar, ousara dizer que a ajuda de custo
de 900 escudos diários mal chegava para pagar o quarto. O ditador perguntou-
lhe então em que hotel se albergava. Quando Leite Pinto pronunciou o nome, a
resposta veio pronta: «Ah! Mas esse é o hotel onde os arquiduques davam as
suas ceias privadas», retorquiu, fazendo uma pausa maliciosa e preparando-se
para a lição do dia. «Sabe, em frente à catedral de Santo Estevão há uma
residencial muito melhor do que um hotel de três estrelas», sugeriu. «Tem
todos os requisitos necessários: quarto com banho e telefone. Até tem uma casa
de jantar no alto, de onde se podem fotografar os telhados multicolores da
catedral. Os seus 900 escudos talvez lá cheguem para pensão completa»,
insistiu Salazar, antecipando-se no imediato a qualquer outro argumento. «E
não me diga que tem de retribuir almoços e jantares em restaurantes famosos!
O senhor é um alto funcionário em missão de serviço e não o representante de
Portugal. São os embaixadores que retribuem gentilezas sociais», concluiu.
Acresce dizer que o ditador nunca tinha estado em Viena.
Apesar da fama de retorcido nestas matérias, tempos houve em que Salazar,
atravessando o vigor da governação e da sua condição física, se terá permitido
alguns excessos, se olhados pelo prisma do rigor ascético que impunha a si
próprio.
Dessas décadas, os arquivos guardam anotações e faturas, sempre pagas por
ele, de serviços de chá para 250 pessoas encomendados à aristocrática
pastelaria Bénard, no Chiado, que incluiam vinho branco, laranjadas,
limonadas, vinho do Porto, serviço de 15 criados e, por vezes, também o

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