A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

transporte da mercadoria, cuja soma atinge preços superiores a um quarto do
seu salário. Nem sempre terá sido o caso, mas é possível que estas despesas
envolvessem algum evento fora da agenda oficial ou fossem incluídas nas
atividades paralelas de Maria de Jesus: ela tinha por hábito organizar chás para
as senhoras da alta sociedade, que Salazar pagava mas aos quais raramente
comparecia.
Nascera sem pergaminhos, mas a dedicação canina ao Presidente do
Conselho amadurecera nela, com discrição, gestos e tiques de mulher
«fidalga». Moldou-se às circunstâncias com rapidez, perfeição e eficácia. Não
admirava que, por isso e pela sua influência junto de Salazar, fosse adulada por
mulheres de ministros e senhoras com pedigree que a traziam nas palminhas.
Os chás em São Bento faziam parte desse cerimonial.
Salazar também tratava dos vinhos para ocasiões especiais, recorrendo, em
caso de banquetes, aos conselhos de membros do Governo a quem reconhecia
um estatuto de connaisseurs superior ao seu. Nessas épocas, o velho professor
de Finanças regista, pelo próprio punho, pedidos de garrafas de vinho branco
Serra d’Ayres velho e Águeda Branco, de 1931 e 1938, encomendas de caixas
de garrafas do italiano Lacrima Christi, e também vinho do Porto Duque de
Bragança
e Garrafeira 1917 , para oferecer.
Os dias amargos provocados pela Segunda Guerra Mundial nem por isso
ensombram a celebração da Páscoa caseira, para a qual Salazar mandara
comprar, em 1942, amêndoa normal e de licor. Na passagem dos anos, gastos
inevitáveis como a compra de 500 quilos de carvão Cardiff para o palacete de
São Bento misturam-se com serviços de chá ao domicílio encomendados no
Aviz Hotel e outros estabelecimentos de prestígio da baixa lisboeta.
Estes pequenos entusiasmos surgem tão espaçados no tempo que não chegam
beliscar a postura severa que o chefe do Governo impõe a si próprio e exibe
para consumo interno. Só com Christine Garnier Salazar saberá o que pode
abanar o homem mais monástico às mãos de um «vendaval de simpatia» e de
«desordem perfumada», palavras suas. Nesse início da década de 1950, a
pretexto da escrita do livro intimista que passaria à posteridade sob o nome
Férias com Salazar, ilustrado com fotografias tiradas por Rosa Casaco, agente
da PIDE, a francesa percebe estar diante de um homem incapaz de disfarçar
certas fraquezas.
No Forte de Santo António do Estoril, em encontros posteriores com a
francesa, Micas estranhara o facto de as portadas de madeira do escritório de
Salazar estarem fechadas «enquanto ele permanecia lá dentro com ela», o que

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