«era raro e logo suspeito aos meus olhos curiosos», revelará a protegida do
ditador.
Nem aí Salazar perderá as estribeiras ou arrastará para os alçapões do
coração o seu quase religioso sentido de Estado. Paga os gastos de Garnier em
Portugal, envia-lhe produtos portugueses para Paris – encomendas onde nunca
falta o seu vinho do Dão – e confia as suas palpitações a Marcello Mathias, o
embaixador em Paris que servirá também de correio sentimental entre o ditador
e a requintada francesa.
Na hora de antecipar o agradecimento da obra literária na qual será retratado,
Salazar, cioso da necessária descrição e disposto a não levantar «comentários e
ciumeiras sem fim», recorrerá ao diplomata para encomendar a compra de um
anel que cumpra uma dupla função: nem excessivamente luxuoso que possa
obrigar madame Garnier a dar explicações, nem insignificante ao ponto de ela
não poder dá-las.
Dito isto, «não vale a pena pensar em dinheiro», escreve Salazar. A joia
custará 450 dólares, mas isso que importa? «O dinheiro a mim não me serve de
nada: tenho de mais para a minha modéstia e de menos para a minha posição.
Resultado final: sobra sempre», conclui, na carta enviada ao embaixador.
À parte estas cedências quase clandestinas ao tempero da sua vida
sensaborona de monge numa cela, «o governo caseiro, tradicional e
comezinho», de que falara um dia Costa Brochado, durará até à morte de
Salazar.
Maria de Jesus tem, entre outras, a função de livrá-lo de preocupações, para
que ele se concentre nos destinos do País e territórios adjacentes. Durante
décadas, ela vai gerir parte do dinheiro do patrão à condição de contar cada
centavo na gestão das despesas domésticas. O acerto é feito entre os dois com
uma regularidade quase diária – e com arrelias à mistura – nos aposentos de
Salazar, por vezes já com o Presidente do Conselho sentado na beira da cama.
Ela lamentando-se de tanto mês para tão pouco dinheiro, ele impassível, sem
cedências, mas rogando-lhe que, pelo menos, nada de essencial faltasse portas
adentro.
Rosália aperceber-se-á de discussões entre os dois por causa das finanças
caseiras, «mas se ele pensava que ela gastava de mais, não tinha razão. Ela era
muito forreta». De resto, como notara certa vez Rosa Casaco, a relação entre
Salazar e a «Senhora Maria» será sempre de «patrão ríspido» e «criada
dedicada e muito competente», com limites de intimidade «muito rígidos».
Nos gastos de Salazar estão incluídos os salários da governanta, que em 1965
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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