A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Preocupante para Salazar, isso sim, fora, a meio de outubro, a síncope que
atingira Maria de Jesus, em São Bento. Caíra desamparada, fraturando um
braço, e acabara transportada para o Hospital da Liga dos Amigos dos
Hospitais.
O chefe do Governo desce do pedestal e faz-lhe, por esses dias, visitas
frequentes, meigas e atenciosas, intervaladas com os habituais compromissos
de Estado e um raro escape a uma sala de espetáculos da capital para ver o
ensaio geral do teatro japonês de kabuki.
De regresso ao palacete, a governanta será vigiada de perto por Eduardo
Coelho, o médico de Salazar, que assiste a comovedoras atenções e
delicadezas, pouco habituais nele, dirigidas a Maria: «Não trabalhe tanto,
descanse. Siga as recomendações do doutor, não tenha arrelias», mima-a. Na
sua memória, bailam, por certo, palavras que confessara, em 1952, a Christine
Garnier, sobre a importância da governanta na sua vida: «Não escolhi nenhuma
das minhas gravatas nem nenhum dos meus fatos. Não sei quantas camisas
possuo. O poder absorve-me todo o tempo e todo o pensamento. «Depois da
minha chegada a Lisboa, a Maria encarregou-se de tudo o que eu tive de
negligenciar. Livrou-me de todas as preocupações materiais», reconhecera
Salazar à escritora francesa, admitindo o óbvio. «Conhece os meus assuntos
melhor do que eu. Vive a minha vida.»
Não era mentira. Nunca foi.
Desde a época em que se ocupara dos trabalhos duros de cozinha e faxina na
intimidade da habitação partilhada por Salazar e Gonçalves Cerejeira em
Coimbra, que Maria de Jesus sempre poupara ao patrão preocupações
relacionadas com as rotinas domésticas. Se ele era o Governo da nação, ela era
o governo da casa.
Os dois tinham algo mais em comum: eram dados a alguns achaques.
Um funcionário da Assembleia Nacional instruído de conferir o inventário da
residência oficial voltara certa vez de São Bento muito impressionado. Pelos
vistos, Salazar e Maria eram de tal ordem atreitos a acidentes domésticos e
doenças que, naquela casa, segundo o tal funcionário, seriam precisos dois
médicos: um para o chefe do Governo outro para a governanta.
Quando Salazar devaneia a propósito do que deseja para os seus últimos dias,
no gozo da sua «pequena reforma», ela dará corda à ironia: «Essa pequena
reforma chegará se a conta da farmácia não aumentar.»

Free download pdf