A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Havia vários retratos de chefes de Estado, dispersos por todo o gabinete, em
mesas ou por cima de armários.
O ditador italiano Mussolini chegou a figurar em lugar de destaque, o mesmo
acontecendo com uma fotografia em moldura de prata oferecida pelo Papa Pio
XII, com dedicatória, e outra, do mesmo género, do ditador espanhol Franco.
As visitas deparavam-se também com retratos da Rainha Isabel II, de
Inglaterra e de Filipe de Mountbatten (duque de Edimburgo).
Ao cenário, não faltavam obras raras e clássicos literários, do fac-similado
Codex Manesse , emblemático manuscrito alemão da Idade Média, às obras de
espiritualidade cristã do presbítero Manuel Bernardes. Havia também vasta
literatura francesa, a preferida do mais importante inquilino do Estado.
Salazar raramente usava a secretária, embora ligasse o candeeiro de mesa que
colocava o espaço numa meia penumbra. Tinha uma justificação elaborada
para isso: «O português, que é generoso e bom, transforma-se às vezes nas
repartições atrás das mesas de trabalho, esquecido de que a pobre gente que
pede um conselho, deseja um esclarecimento, se justifica duma falta, é a que
trabalha e paga para que nós defendamos os seus interesses. Por isso, há muito
tempo que eu próprio deixei de trabalhar à minha secretária.»
Preferia acomodar-se no fundo da poltrona, espalhar os papéis, os livros e os
dossiês pelo chão, e escrever num bloco apoiado numa pasta de couro. «Que
novidades há?», atirava, recostado, aos ministros, naquele período de «antes do
despacho» em que adorava perder minutos em conversas sobre fait-divers
políticos e mundanos, por norma episódios ocorridos em ambientes que ele
raramente frequentava.
Contudo, trocava de boa vontade estes encontros pela possibilidade de
decidir em solidão. Preferia dar indicações por escrito, enviar sugestões, notas
e comentários a diplomas ou despachos para evitar a preguiça e o fio maçador
das conversas. «Não recebo ninguém ou poucas pessoas, porque tenho assim
tempo para ler ou fazer ler tudo o que me escrevem, para estudar as
reclamações inteligentes que me fazem», justificara-se, ironizando sobre o
perfil dos compatriotas: «Como em cada português há não só um indivíduo que
usa constantemente do seu direito de representação perante os poderes
públicos, mas também um escritor epistolar, eu estou geralmente ao corrente
das necessidades individuais de cada um...»
Tratando-se de trabalho, vinha à tona o Salazar severo e austero, sobretudo
para os novatos nas lides governativas. «Havia a fama de que a primeira sessão
com os caloiros do Governo era uma espécie de exame de Estado», lembrará

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