A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Segunda Guerra Mundial. Beneficiado por decisões governativas em
reconhecimento do seu empenho profissional e prestígio, vira, em dado
momento, ser-lhe rejeitada, por carta, uma pretensão relativa aos serviços de
cardiologia do Hospital de Santa Maria. A missiva é um exemplo notável da
elegância mortal de Salazar: após tecer considerações elogiosas ao
cardiologista e referir-se, ao longo de várias páginas, aos deveres do Estado na
gestão da coisa pública, o Presidente do Conselho aproveita o último parágrafo
para rejeitar, a bem da nação e sem margem para qualquer dúvida, o que
Eduardo Coelho lhe pede. Isto sem prejuízo das consultas quase diárias que o
visado continuará a fazer ao chefe do Governo até à sua morte.
Salazar tinha fama de escutar sem interromper e não ficar preso a
ressentimentos.
Mas havia outras versões.
Fiel servidora, Maria levava-lhe ao conhecimento comentários menos
abonatórios e ditos injuriosos que circulavam contra ele nos corredores do
poder, por vezes vindos de gente até bem próxima.
É certo que Salazar simulava não sentir as ofensas, mas nunca as esquecia.
No momento próprio, punia-as sempre, dizia Costa Brochado. Contudo, «não
era impressionável, nem influenciável, nem volúvel», segundo Franco
Nogueira.
O Cardeal Cerejeira, amigo e confidente desde os tempos de Coimbra,
concedia-lhe «uma rara objetividade nas discussões» e uma «fina ironia», mas
nunca vira «tantos contrastes na mesma pessoa». Dizia-o apreciador da
«companhia das mulheres» e da «sua beleza», mas levando «uma vida de
frade». Sobre a condição feminina, não se podiam esperar dele especiais
arrebatamentos. «Estou nisto de reivindicações feministas tão atrasado, tão
retrógrado, tão fóssil, que, para mim, o maior elogio da mulher é ainda o
epitáfio romano: “Era honesta, dirigia a casa; fiava lã”», afirmara, sempre
considerando que o trabalho da mulher fora de casa desagregava o lar e «a vida
comum», com prejuízo para «a obra educativa das crianças» e o crescimento da
prole.
A todo instante chocavam, na sua personalidade, o ceticismo e o entusiasmo,
o orgulho e a modéstia, a desconfiança e a confiança, a bondade mais tocante e
a dureza mais inesperada. «O que é o orgulho?», respondera Salazar a
Cerejeira, na juventude, quando o amigo o acusou de ser orgulhoso.
Quem o quisesse moldar aos seus desejos, deveria apresentar factos e
argumentos inquestionáveis. Compreendia os defeitos dos homens, mas jogava

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