A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

tivesse acontecido ao Eusébio», comentara, com graça, a pouca distância
temporal do Mundial de Inglaterra, no qual a seleção portuguesa obteria um
honroso terceiro lugar, o melhor da sua história na competição.
As mais novas raparigas da casa estavam sempre de olho nas entradas e
saídas de convidados, quanto mais não fosse para apreciar um rosto fino, uma
beldade masculina, um exemplar do sexo oposto de porte respeitável. Algo,
enfim, que abanasse a rotina cinzenta e indiferenciada feita do habitual
corrupio de governantes, muitos deles já entradotes. Uma das visitas mais
apreciadas era a de Manuel Nazaré, médico analista de Salazar, negro,
educadíssimo, sereno, que deixava o mulherio da casa em afogueado alvoroço.
«Era muito bem afeiçoado!», reconhece Rosália. «Cheirava muito a Tabu , um
perfume que deixava rasto. A gente comentava porque os pretos eram
normalmente muito feios, muito beiçarras , mas aquele era da gente apreciar»,
ri-se aquela que era, então, uma adolescente.
O ditador referira-se a este seu amigo numa entrevista ao jornal conservador
de direita L ́Aurore. Moçambicano de nascença – o jornalista cita-o
erradamente como angolano – Salazar usava o seu exemplo para justificar a
necessidade que os negros tinham «de ser enquadrados», pois não possuiriam,
acreditava, «as mesmas aptidões dos brancos». Com «excelentes estudos» e
educado na Suíça, o responsável pelas análises clínicas do chefe do Governo
teria, segundo a versão de Salazar, ficado chocado quando, certa ocasião,
visitando a terra natal, dera com o irmão, que também crescera na Europa,
«reabsorvido pelos costumes tribais: vivia em concubinagem com várias
mulheres que lhe tinham dado numerosos filhos, comia com as mãos e quase
tinha esquecido a civilização na qual se formara.» Concluíra Salazar:
«Desaparecido o quadro europeu, tanto bastou para que regressasse à vida
primitiva.»


Enquanto «o senhor doutor» recebia visitas, lia ou escrevia no gabinete, a
tarde era, em São Bento, de faxina para as criadas. Lavava-se a roupa nos
tanques, punha-se a corar. «Se quiséssemos lavar a nossa roupa, tínhamos de
pedir autorização à dona Maria.»
Três tardes por semana, passava-se a ferro na sala dos «passados», ao pé da
cozinha. Se Maria decidisse que o «senhor doutor» tinha de vestir, no dia
seguinte, uma certa camisa, as ordens não admitiam «ses» nem «mas»:
cumpriam-se.

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