A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Era, contudo, nessas ocasiões que a boa disposição se instalava. Enquanto se
definiam vincos e alisavam tecidos, as mais velhas da casa, com Júlia à cabeça,
faziam palhaçadas com a roupa interior da governanta, recordando histórias
antigas e episódios galhofeiros. Episódio que desencadeava risota pegada era o
daquele dia em que Maria, passeando pela baixa lisboeta com a irmã Rosalina,
sentira o elástico das cuecas rebentar. Impávida, mantendo a pose e sem
esboçar um esforço para as apanhar, virara-se para a irmã, brusca: «Ó Rosalina,
apanha!»
A relação entre ambas nunca foi edificante, evidência mantida até ao fim dos
dias de Maria. Indignada, Rosalina verificou que a eterna e casta governanta,
por sinal sua irmã, não lhe havia deixado um tostão na herança. «A Rosalina
era a mãe da Maria Antónia, outra das protegidas do senhor doutor. No início,
dava-se bem com a irmã, mas a partir de certa altura nunca mais lá foi. Quando
a dona Maria faleceu, já estavam zangadas.» A família nunca morreu de
amores pela governanta e ela pagava na mesma moeda.


O ano de 1967 acentuara as debilidades e fraturas do regime. Salazar está
cada vez mais impaciente para os assuntos de Estado e vê o imaginário de um
fim tranquilo e sereno em Santa Comba, entre livros e flores, fugir-lhe como
areia entre os dedos.
No plano pessoal, atreve-se a raros passeios domingueiros com os pequenos
de Micas. Visita amigos em Vila Franca de Xira e Torres Novas e, nas horas
vagas, deixa-se absorver pelos escritos do padre jesuíta Teilhard de Chardin ou
por Negritude, tese de licenciatura em ciências sociais de José Montenegro
onde Salazar busca uma reflexão sobre a coexistência do colonialismo com as
ambições dos povos africanos.
Uma e outra vez voltam os lamentos, as preocupações com o dia seguinte:
«Sinto-me caminhar cada vez mais para a morte e estou fundamente
preocupado com a minha sucessão», dirá.
Nesse ano, a inquietação, o mal-estar e o esgotamento atravessam as
universidades e os quartéis. Dirigentes comunistas na margem sul do Tejo e em
toda a zona sul do País são arrastados por uma vaga de prisões, enquanto
brigadas oposicionistas assaltam bancos e se apoderam de armamento.
O final de 1967 juntará duas tragédias, uma de facto, outra política: o mau
tempo e as cheias devastam a periferia de Lisboa e provocam mais de 300
mortos trazendo à tona as misérias da nação, enquanto a censura corta e rasga

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