V
À mesa em São Bento
No outono de 1925, Salazar e Gonçalves Cerejeira habitavam, em Coimbra,
uma das casas académicas da cidade, residência por exagero chamada «Palácio
dos Grilos».
Na verdade, era um antigo convento, situado na Rua dos Grilos, e nele se
haviam juntado os dois velhos amigos, professores catedráticos e membros do
Centro Católico. Vivia-se uma época de grandes conflitos entre o poder
republicano e a Igreja que, por vezes, originava que ambos fossem à missa «de
moca sob a capa e o mais que se não via», revelara Cerejeira, nas suas
memórias.
Salazar coordenava ao minuto o seu dia, Cerejeira nem por sombras.
Salazar não mexia um móvel do lugar, Cerejeira era o contrário.
«Todo fantasia», dirá o amigo. «Aproveitava a minha ausência para empurrar
a mesa e as cadeiras, deslocar os quadros», e parecia-lhe assim que morava
noutra casa, queixava-se Salazar.
«És um animal de hábitos!», rezingava o futuro cardeal, irritado com o
caráter metódico do companheiro de residência. Cerejeira sempre lhe censurou
a pontualidade e o espírito de disciplina «excessivos», recusando ser
domesticado por ele no caráter e nos escritos. Aborrecia-se por ver o armário
de Salazar «mais bem arrumado do que o de uma rapariga» e quando via o
amigo sair, a horas certas, para o passeio diário.
Não obstante as aparências, nem um nem outro estavam, nessa época,
vocacionados para os afazeres domésticos. Pagavam esses serviços a criadas
que entravam e saiam ao ritmo das insatisfações de ambos.
A limpeza e o asseio resultavam sofríveis, mas pior eram mesmo os
cozinhados, onde faltavam cuidados e saberes, à mistura com o cheiro a
petróleo do fogareiro.