Época – Edição 1077 (2019-02-25)

(Antfer) #1
66

A


águainvadeatelaemondas
porlongosminutosnaaber-
turadofilme.Foradatela,
ouvimosoesfregardeumaes-
covadecerdasdepalha,en-
quantoespumadesabãoflu-
tuaparadentroeparaforadecena.Final-
mente, oquadroabreerevelaumajovem,
comumbaldedemetalnumamãoeumro-
dodecabolongonaoutra.
Aáreadeazulejoembaixodaescovaéa
garagemdeumacasaemumadaspartes
maisantigasdaCidadedoMéxico,e,se vo-
cê éumespectadormexicano,saberánaho-
raqueapessoasegurandoobaldeéuma
empregada,fazendoalimpezamatinaldiá-
ria.Vo cêsaberásuaprofissãomesmoantes
deverseurosto,porquesuapeleéescura,
porquesuasroupassãopobresdemaispara
queelasejaqualqueroutracoisanumacasa
daqueletamanhoeporqueelairradiaumar
decalmaepaciênciaintrínseca.Oquevocê
nãonecessariamente vaiperceberéqueela,
Cleo,éaprotagonistadofilme,porquene-
nhumfilmemexicano,comexceçãodasco-
médiasridículaseofensivasestreladaspela
IndiaMaría,jamaiscolocouumaempregada
domésticanocentrodesuanarrativa.
(Apenasmaistardecompreenderemos
queaquiloqueCleoestáalimpartãoocupa-
daéamaisimundadetodas as imundícies:
m...decachorro,ofertadaemgrandesquan-
tidadesporBorras,umvira-lata alegrequeé
ocãodeguarda,masnãoexatamente oani-
maldeestimação.Animaisdeestimaçãono
estiloamericanonãoexistiamnoMéxicoem
1970,anoemqueofilmecomeça.)
Para umespectadoramericano—oupelo
menosparaaquelesespectadoresquenunca
conheceramouforamempregadosdomésti-
cos,nuncaconhecerampatrõesdeumem-
pregadoemtempointegralouemmeiope-
ríodooununcacontrataramumamulherque
oferecesseajudadoméstica—,entendera
personagemdeCleoe, porextensão,seusem-
pregadoresétalvezaindamaiscomplicado.
Mascomecemosanalisandoacasacomcui-

dado:elaficanooutroraelegante bairrode
Roma. Grande,masnãoenorme,eumpouco
precária, certamentenãoéluxuosa.Alémde
Cleoedesuamelhoramiga, acozinheirada
casa, setepessoasmoramali:quatrocrianças,
quedividemdoisquartos; opai,ummédico;
suaesposa,umaquímica;eamãedaesposa.
Osmóveis,pesadoseescuros,provavelmente
pertencemàmãedaesposa, eépossível queo
restodacasatambém.(Comoeuseidisso?
Porque,nosanos60,pessoas comosempre-
gosdospatrõesdeCleoviviamemcasasno
subúrbiomaisnovaseconfortáveisouem
apartamentosmaisbaratosefáceisdecuidar.)
EssaéacasaemqueAlfonsoCuarón,o
diretordeRoma,cresceu.Oupelomenosé
arecriação,meticulosaaponto deserinsa-
na,daquelacasa.Eessaéahistóriadeuma
memóriadeCuaróndeumtempoturbulen-
to desuainfância.Aobraéfilmadaparalela
àação,comose acâmerafosseofantasma
dodiretorrevisitandosuainfânciaeolhan-
do-asilenciosamente,comacompaixãoea
distânciaqueàs vezessomossortudososu-
ficiente deconseguirsentirpornossajuven-
tudepecaminosaepeladenossospais.A
heroína,entretanto,éCleo,ababácujoafe-
to,aocontráriodocasodospais,nuncaos-
cilaouédesconcertante eque,diferente-
mente deumaoutrababáinfinitamente de-
sagradávelemoutrastelaspelacidade,reali-
za verdadeirosmilagres.Elaestáháanosna
cabeçadeCuarón:emsuaantigaobra-pri-
ma,Esua mãetambém(2001),percebe-sede
relanceLiboriaRodríguez—apessoareal
naqualapersonagemCleoébaseada—car-
regandoumabandejadecomida,porum
longolancedeescadas,paraomeninorico
interpretadoporDiegoLunaeentregando-a
aele comumtapinhaafetuoso.(Opersona-
gemdeLunaquaseignoraocuidadodela,
suajornadacheiadeesforçopelasescadas,
seuamorporele,seutrabalhoárduo.Quase,
masnãocompletamente;maistarde,nofil-
me,enquanto ocarroemqueeleestápassa
porumaplacaapontandoocaminhodeTe -
pelmeme—acidadenataldeLiborianavi-

Acena em que
aempregada salva
os filhos da patroa
do afogamento

CRÔNICADOMÉSTICA
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