A Marca do Assassino

(Carla ScalaEjcveS) #1

CAIRO


─ Meu Deus, esta maldita cidade.
Astrid Vogel estava de pé, junto às portas de correr, abertas para o anoitecer
frio de Inverno. Havia uma pequena varanda com uma balaustrada de ferro forjado
ferrugento, mas o senhor Fahmy, o recepcionista, avisara que as varandas andavam
a cair nos últimos tempos, por isso, por favor, é melhor não ir para lá. Estavam no
hotel havia dois dias e a sanita deixara de funcionar três vezes. Por três vezes o
senhor Fahmy aparecera, de casaco e gravata, munido com um rolo de fita-adesiva
castanha e uma bobina de fio de cobre. Todos os bons faz-tudo estavam no Golfo
(no Kuwait, na Arábia Saudita ou nos Emirados) a trabalhar para xeques do
petróleo. O mesmo acontecia com os professores, os advogados e os contabilistas.
Os profissionais e os ricos tinham fugido. O Cairo era uma cidade de camponeses
em ruínas e não havia ninguém qualificado para a reparar. Depois o autoclismo
começava a funcionar, como o esperado, e ele sorria tristemente e dizia: "Está
arranjado, inshallah", embora soubesse que estaria de volta no dia seguinte com o
seu elixir de fita-adesiva e fio de cobre.
Teve início a chamada para oração da noite, primeiro um único muezim,
muito distante, depois outro e mais outro, até que mil vozes grosseiramente
amplificadas gritavam em uníssono. O hotel encontrava-se situado ao lado de uma
mesquita e o minarete erguia-se mesmo em frente à janela. Naquela manhã,
quando aquela coisa começou a troar pela madrugada, Astrid acordou de tal forma
assustada que pegou na arma que estava em cima da mesa-de-cabeceira e correu
nua para a varanda. Astrid era uma ateia devota. A religião deixava-a nervosa. No
Cairo, havia religião por todo o lado. Envolvia as pessoas, rodeava-as. Não havia
forma de lhe escapar. A solução era troçar dela. Naquela tarde, quando a chamada
do muezim começou, levou Delaroche para a cama e fez com ele amor desenfreado.
Agora' ouvia a chamada como um biólogo marinho poderia estudar os sons de
acasalamento das baleias-cinzentas. Apercebeu-se de que era ligeiramente musical,
harmoniosa, como uma daquelas fugas em que um violino toca a mesma série de
notas depois de outra ter acabado. O Cânone do Cairo, pensou. O chamamento
extinguiu-se lentamente até uma única voz pairar no ar, algures na direção de Giza
e das pirâmides, e depois também ela desapareceu. Astrid permaneceu junto às
portas de correr, os braços cruzados sobre os seios, a fumar um horrível cigarro
egípcio, a beber champanhe gelado porque o hotel estava sem água engarrafada e a
agua da torneira podia matar um búfalo-da-índia. Tinha vestido uma galabia de
homem, as mangas arregaçadas e desabotoada até o umbigo. Delaroche, deitado na

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