A Marca do Assassino

(Carla ScalaEjcveS) #1

cama, observava o contorno indistinto do seu corpo de modelo através do tecido
translúcido da túnica branca. Comprara-a naquele dia, num mercado de rua perto
do hotel, chamando a atenção de uma forma apenas conseguida por uma loura
alemã de um metro e setenta e oito nas ruas sexualmente oprimidas do Cairo.
Durante algum tempo, Delaroche pensou que tinha cometido um erro ao deixá-la
sair, mas era Inverno e havia milhares de turistas escandinavos na cidade, por isso
ninguém se lembraria da alemã alta que insistira em comprar uma túnica de
camponês no mercado. Alem disso, Delaroche gostava de andar a pé pelas ruas
palpitantes do Cairo. Tinha sempre a sensação de estar a deslocar-se através de
outras cidades: agora uma esquina de Paris, agora uma viela de Roma, agora um
quarteirão da Londres vitoriana, tudo coberto de pó e entulhos como a Esfinge.
Desejou poder pintar, mas naquela viagem não havia tempo para isso.
O vento noturno que entrava pelas portas abertas cheirava ao Deserto
Ocidental. Misturava-se com o fedor que é exclusivo do Cairo: pó, lixo em
putrefação, madeira a arder, fezes de macaco, urina, escapes de milhões de carros e
camiões, fumos tóxicos das fábricas de cimento de Helwan. Mas era fresco e seco,
maravilhoso na pele úmida e nua dos seios de Astrid. O pó acumulava-se no seu
rosto. Estava por todo o lado, cinzento, fino como farinha. Penetrava-lhe na mala,
nos livros e nas revistas. Delaroche estava constantemente a limpar a Beretta que
lhe fora deixada no cofre de um banco do Cairo.
─ Este pó ─ resmungava ele, passando com um farrapo oleado sobre o cano.
─ Este malvado deste pó.
Astrid gostava da janela aberta, pois o ar condicionado estava avariado e
nada no saco de truques do senhor Fahmy podia arranjá-lo, mas as criadas
fechavam sempre o quarto como um sarcófago.
─ O pó ─ diziam, à laia de explicação, revirando os olhos para a janela
aberta de Astrid. ─ Por favor, o pó.
Aventurou-se a ir à varanda, ignorando o terrível aviso do senhor Fahmy. Lá
em baixo, homens empurravam carros silenciosos por uma rua estreita e obstruída.
Havia um milhão de carros no Cairo e Astrid não vira um único verdadeiro
estacionamento coberto. Os habitantes do Cairo tinham desenvolvido uma medida
provisória completamente insana: limitavam-se a deixar os carros no meio da rua.
Por uma mancheia de piastras amachucadas, empreendedores astutos tomavam
conta de um carro o dia todo, empurrando-o de um lado para o outro, abrindo
espaço para outros. Muitas ruas laterais da baixa eram intransitáveis, pois tinham
sido transformadas em estacionamentos temporários. Do outro lado da estrada, ao
lado da mesquita, um edifício de escritórios ruía lentamente. Em vez de retirarem
os móveis de uma forma ordeira, os trabalhadores limitavam-se a atirar as coisas

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