A Viúva Negra

(Carla ScalaEjcveS) #1

Q


NAHALAL, ISRAEL

uando Natalie voltou a Nahalal, o volume de poesia de Darwish tinha desaparecido
do criado-mudo do quarto. Em seu lugar, havia um livro encadernado, grosso como
um manuscrito e escrito em francês. Era a continuação da história que Gabriel iniciara
em meio às ruínas de Sumayriyya, a história de uma jovem talentosa, uma médica
nascida na França com ascendência palestina. O pai dela vivera uma vida itinerante típica
de muitos palestinos estudados e sem Estado. Depois de se formar na Universidade de
Bagdá com um diploma em Engenharia, ele trabalhara no Iraque, na Jordânia, na Líbia e
no Kuwait antes de finalmente se fixar na França, onde conheceu uma palestina nascida
em Nablus que trabalhava meio-período como tradutora para uma agência de refugiados
das Nações Unidas e para uma pequena editora francesa. Tiveram dois filhos, um morto
em um acidente de automóvel na Suíça, aos 23 anos, e uma que batizaram em
homenagem a Leila Khaled, famosa combatente da liberdade que participou do Setembro
Negro e foi a primeira mulher a sequestrar um avião. A existência de 33 anos de Leila
estava apresentada nas páginas de um livro, com os penosos detalhes confessionais de
uma autobiografia moderna. Natalie teve de admitir que dava uma boa leitura. Havia o
desprezo sofrido na escola por ser árabe e muçulmana. Havia a breve experiência com
drogas. E havia uma descrição anatomicamente explícita da primeira experiência sexual
dela, aos 16 anos, com um garoto francês chamado Henri, que partira o coração da pobre
Leila. Ao lado dessa passagem estava uma fotografia dos dois adolescentes, um menino
de aparência francesa e uma garota de aparência árabe, posando na balaustrada da Pont
Marie, em Paris.
— Quem são? — Natalie perguntou ao Abdul cadavérico.
— São a Leila e o namorado dela, Henri, é claro.
— Mas...
— Nada de “mas”, Leila. Essa é a história da sua vida. Tudo o que está lendo nesse
livro aconteceu de verdade com você.
Como judia francesa, Natalie descobriu que tinha muita coisa em comum com a
mulher palestina que ela em breve se tornaria. Ambas tinham sido provocadas na escola
por causa de sua ascendência e de sua fé, ambas tinham tido experiências sexuais precoces
infelizes com garotos franceses e ambas tinham começado a estudar Medicina no outono
de 2003, Natalie na Université de Montpellier, uma das mais antigas faculdades de
Medicina do mundo, e Leila na Université Paris-Sud. Era uma época tensa na França e
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