A Viúva Negra

(Carla ScalaEjcveS) #1

caso, se o artesão e seu tema fossem suficientemente íntimos, uma restauração podia ser
feita em velocidade extraordinária, com mais ou menos o mesmo resultado.
— Você e Caravaggio são velhos amigos? — perguntou Cohen.
— Já colaboramos no passado.
— Os boatos são verdadeiros, então?
Gabriel estava pintando com a mão direita. Agora, passou o pincel para a esquerda,
trabalhando com a mesma destreza.
— Que boatos seriam esses? — perguntou, depois de um momento.
— Que foi você que restaurou a Deposição para os museus do Vaticano há alguns
anos.
— Você nunca deveria dar ouvidos a boatos, Ephraim, especialmente quando dizem
respeito a mim.
— Ou a notícias — disse Cohen, em tom sombrio.
Seus horários de trabalho eram erráticos e imprevisíveis. Um dia inteiro podia
passar sem sinal dele e, então, Cohen chegava ao museu e descobria uma grande parte da
tela milagrosamente restaurada. Certamente, pensava, ele tinha um ajudante secreto. Ou,
talvez, o próprio Caravaggio estivesse entrando às escondidas no museu à noite, espada
em uma mão, pincel na outra, para ajudar com o trabalho. Depois de uma sessão
noturna — uma visita particularmente produtiva durante a qual a Virgem foi restaurada
à sua antiga glória —, Cohen se deu ao trabalho de checar as gravações de segurança.
Descobriu que Gabriel tinha entrado no laboratório às dez e meia da noite e saído às sete
e vinte da manhã seguinte. Nem o guarda-costas com olhos de lince estivera com ele.
Talvez fosse verdade, pensou Cohen, enquanto assistia à figura fantasmagórica se
movendo um frame por segundo ao longo de um corredor à meia-luz. Talvez ele fosse
mesmo um arcanjo.
Quando ele estava presente durante o horário regular de trabalho, sempre havia
música. La Bohème era uma das favoritas. De fato, ele a tocava tanto que Cohen, que não
falava uma palavra de italiano, logo era capaz de cantar Che gelida manina de cor. Uma vez
que entrava em sua gruta acortinada, Gabriel nunca reaparecia antes de a sessão ter
terminado. Nada de passeios pelo jardim de esculturas do museu para arejar a cabeça,
nada de idas ao refeitório dos funcionários para uma dose de cafeína. Só a música, o
suave tap-tap-tap do pincel e o clique ocasional de sua câmera Nikon registrando o
progresso incansável. Antes de sair do laboratório, ele limpava os pincéis e a paleta e
arrumava o carrinho — precisamente, notou Cohen, para que pudesse detectar se
alguém tocasse em algo durante sua ausência. Então, a música silenciava, as lâmpadas
halógenas escureciam e, com pouco mais que um cordial aceno de cabeça aos outros, ele
ia embora.
No início de abril, com as chuvas de inverno já na memória e os dias quentes e
claros, ele estava se arremessando impetuosamente em direção a uma linha de chegada
que só ele conseguia ver. Só faltava o anjo alado do Senhor, um menino de pele de
marfim que flutuava no alto da composição. Era uma escolha curiosa para deixar para o

Free download pdf