A Viúva Negra

(Carla ScalaEjcveS) #1

final, pensou Cohen, pois o menino-anjo sofrera ferimentos graves. Seus membros
tinham cicatrizes de grandes perdas de tinta, sua roupa branca estava em farrapos.
Apenas a mão direita, apontada para o céu, estava intacta. Gabriel restaurou o anjo em
uma maratona de sessões consecutivas. Elas eram notáveis pelo silêncio — não havia
música tocando durante esse período — e pelo fato de que, enquanto ele reparava o
cabelo castanho-avermelhado do anjo, uma grande bomba explodiu em Paris. Gabriel
parou por muito tempo em frente à pequena televisão do laboratório, a paleta secando
lentamente, assistindo aos corpos sendo retirados dos escombros. E, quando a fotografia
de uma mulher chamada Hannah Weinberg apareceu na tela, ele se sobressaltou como se
tivesse sido atingido por um golpe invisível. Depois disso, sua expressão escureceu e
seus olhos verdes pareceram queimar de raiva. Cohen ficou tentado a perguntar se a
lenda conhecia a mulher, mas decidiu não fazê-lo. Podia-se falar sobre pinturas e o
tempo, mas, quando bombas explodiam, era melhor manter distância.
No último dia, o dia da viagem de Uzi Navot a Paris, Gabriel chegou ao laboratório
antes do alvorecer e permaneceu em sua pequena gruta muito depois de o museu ter
fechado. Ephraim Cohen arrumou uma desculpa para ficar até mais tarde porque sentia
que o fim estava próximo e queria estar presente para testemunhá-lo. Pouco depois das
oito horas, ouviu o som familiar da lenda deitando seu pincel — um Winsor & Newton
Série 7 — na bandeja de alumínio de seu carrinho. Cohen espiou furtivamente pelo vão
fino da cortina e viu-o parado em frente à tela, uma mão no queixo, a cabeça inclinada
levemente para o lado. Ele permaneceu na mesma posição, tão imóvel quanto as figuras
no quadro, até o guarda-costas com olhos de corça entrar no laboratório e colocar de
forma urgente um celular na mão dele. Relutantemente, levou-o à orelha, ouviu em
silêncio e murmurou algo que Cohen não conseguiu entender bem. Um momento
depois, tanto ele quanto o guarda-costas se foram.
Sozinho, Ephraim Cohen deslizou pela cortina e parou em frente à tela, quase incapaz
de respirar. Por fim, pegou o pincel Winsor & Newton do carrinho e o escondeu no
bolso de seu avental. Não era justo, pensou, enquanto apagava as lâmpadas halógenas.
Talvez ele realmente fosse mesmo um arcanjo.

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