A Viúva Negra

(Carla ScalaEjcveS) #1

cheia de caldo de frango caseiro. Havia também uma garrafa fechada de syrah da Galileia.
Gabriel sacou a rolha, serviu uma taça e voltou à sala de estar.
Silenciosamente, sentou-se na poltrona em frente a Chiara. E pensou, não pela
primeira vez, que o apartamento no antigo bairro de Nachlaot era pequeno demais para
uma família de quatro pessoas e longe demais do boulevard Rei Saul. Seria melhor ter
uma casa no cinturão de subúrbios seculares ao longo da Planície Costeira ou um
apartamento grande em uma das elegantes torres novas, que pareciam brotar da noite
para o dia à beira-mar em Tel Aviv. Mas, há muito tempo, Jerusalém, a cidade partida de
Deus no topo de um morro, o enfeitiçara. Ele amava os prédios em pedra calcária, e o
cheiro de pinheiros, e o vento frio, e as chuvas no inverno. Amava as igrejas, e os
peregrinos, e os judeus ultraortodoxos que gritavam com ele porque ele dirigia uma
moto no Sabbath. Amava até os árabes da Cidade Velha que o olhavam com desconfiança
quando ele passava por suas barracas no souk, como se de alguma forma soubessem que
era ele quem tinha eliminado tantos de seus santos padroeiros do terror. E, ainda que
não fosse religioso praticante, amava entrar no bairro judeu e parar em frente às pesadas
pedras de cantaria do Muro das Lamentações. Gabriel estava disposto a aceitar acordos
territoriais para garantir uma paz duradoura e viável com os palestinos e o mundo árabe
em geral, mas, particularmente, considerava o Muro das Lamentações inegociável.
Nunca mais haveria uma fronteira cortando o coração de Jerusalém, e nunca mais os
judeus precisariam pedir permissão para visitar seu local mais sagrado. O Muro era
agora parte de Israel e assim permaneceria até que o país deixasse de existir. Nesse canto
volátil do Mediterrâneo, reinos e impérios iam e vinham como as chuvas de inverno.
Um dia, a reencarnação moderna de Israel também deixaria de existir. Mas não enquanto
Gabriel estivesse vivo, e certamente não enquanto ele fosse chefe do Escritório.
Ele bebeu um pouco do syrah terroso e com notas de pimenta, e fitou Chiara e
Raphael como se fossem figuras de sua natividade particular. O bebê tinha soltado o
peito da mãe e estava deitado embriagado e saciado em seus braços. Chiara olhava para
ele, seu longo cabelo encaracolado com luzes castanhas e avermelhadas caindo por cima
de um ombro, seu nariz angular e seu maxilar meio de lado. O rosto de Chiara era de
uma beleza atemporal. Nele, Gabriel via traços da Arábia, e do Norte da África, e da
Espanha, e de todos os outros lugares pelos quais os ancestrais dela tinham vagado antes
de pararem no antigo gueto judeu de Veneza. Foi ali, dez anos antes, em um pequeno
escritório perto da ampla piazza do gueto, que Gabriel a vira pela primeira vez — a
linda, teimosa e estudada filha do principal rabino da cidade. Gabriel não sabia, mas ela
também era agente de campo do Escritório, uma bat leveyha, agente que posava como
acompanhante. Ela se revelou a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente
envolvendo um tiroteio e a polícia italiana. Preso sozinho com Chiara em um
apartamento seguro, Gabriel desesperadamente quis tocá-la, mas esperou até que o caso
estivesse resolvido e eles estivessem de volta a Veneza. Ali, em uma casa à beira do canal
em Cannaregio, fizeram amor pela primeira vez, em uma cama preparada com lençóis
novos. Foi como fazer amor com uma figura pintada pelas mãos de Veronese.

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