A Viúva Negra

(Carla ScalaEjcveS) #1

Por meia hora ela não voltou. Gabriel lavou a louça e secou os balcões da cozinha com
cuidado, para que Chiara não achasse necessário reprisar seus esforços, o que costumava
acontecer. Colocou água e café na cafeteira automática e foi sorrateiramente pelo corredor
até o quarto do casal. Ali, encontrou sua esposa e sua filha — Chiara de costas na cama,
Irene deitada de bruços nos seios da mãe; ambas dormindo profundamente.
Gabriel ficou à porta, com o ombro apoiado contra o batente, e permitiu que seus
olhos passeassem lentamente pelas paredes do quarto. Estavam cheias de quadros — três
pintados pelo avô de Gabriel, os únicos três que ele conseguira rastrear, e vários outros
por sua mãe. Havia também um grande retrato de um jovem com têmporas
prematuramente grisalhas e um rosto abatido e cansado, atemorizado pela sombra da
morte. Um dia, pensou Gabriel, seus filhos perguntariam sobre o jovem atormentado
do quadro e sobre a mulher que o tinha pintado. Não era uma conversa pela qual ele
ansiava. Desde já, sentia medo da reação deles. Será que teriam pena? Sentiriam medo
dele? Pensariam que era um monstro, um assassino? Não importava; ele tinha que
contar. Era melhor ouvir os detalhes infelizes de uma vida da boca do homem que a
vivera do que ficar sabendo deles por outra pessoa. Mães frequentemente pintavam pais
em uma luz favorável demais. Obituários quase nunca contavam a história toda,
especialmente quando seus personagens viviam vidas secretas.
Gabriel pegou a filha dos seios de Chiara e levou-a ao quarto. Colocou-a gentilmente
no berço, cobriu-a com um cobertor e parou por um momento até ter certeza de que ela
estava acomodada. Enfim, voltou ao quarto do casal. Chiara ainda dormia
profundamente, vigiada pelo jovem taciturno do retrato. Não sou eu, diria a seus filhos.
É só alguém que tive que me tornar. Não sou um monstro nem um assassino. Vocês
existem neste lugar, dormem em paz nesta terra hoje por causa de pessoas como eu.


*. O povo druso é parte de uma comunidade religiosa maometana fundada no Líbano e
existente hoje em partes de Israel, Síria, Jordânia e Turquia. Não são considerados
muçulmanos, embora sejam árabes e seguidores de Maomé. [N.T.]

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