ANJO CAÍDO

(Carla ScalaEjcveS) #1

Gabriel respirou fundo e tirou o plástico de um dos sanduíches. Em seguida, abriu o
vidro e rapidamente jogou o lanche pela brecha. Quinze centímetros de presunto de Parma,
queijo fontina e pão desapareceram numa única mordida voraz.
— Bom, ele obviamente não é kosher — avaliou Chiara.
— Isso é um sinal bom ou ruim?
— Ruim, muito ruim.
Gabriel passou outro sanduíche pela janela. Dessa vez, o dente incisivo do cão cortou
a ponta de seu dedo.
— Você está bem?
— Por sorte eu sou ambidestro.
Ele deu mais três sanduíches para o cachorro, em rápida sucessão.
— O pobre coitado está faminto.
— Melhor não começar a sentir pena dele ainda.
— Você não vai dar o último?
— Vou deixar de reserva. Assim tenho algo para jogar caso ele decida vir atrás do meu
pescoço.
Gabriel destrancou a porta, mas hesitou.
— O que você está esperando?
— Uma declaração de intenções.
Ele abriu a porta alguns centímetros e colocou um pé no chão. O cachorro deu um
rosnado, mas não se mexeu. Suas orelhas estavam erguidas e Gabriel enxergou isso como uma
mudança positiva. Em geral, os cães que tentaram despedaçá-lo no decorrer de sua carreira
mantiveram as orelhas abaixadas e voltadas para trás, como as asas de um caça.
Gabriel colocou o último sanduíche no chão e saiu devagar do carro. Com os olhos
ainda fixos na mandíbula do animal, ele instruiu Chiara a sair pelo lado do carona. Falou
rápido em hebraico, para que o cachorro não entendesse. Parcialmente saciado, o cão devorou
a comida num ritmo mais decoroso, seu olhar amarelo preso em Gabriel e Chiara conforme
ambos seguiam para a porta de trás da casa. Gabriel bateu duas vezes, mas não houve
resposta. Tentou a maçaneta. Estava trancada.
Ele pegou a pequena ferramenta fina de metal que sempre levava na carteira e mexeu na
fechadura com calma, até o mecanismo ceder. Dessa vez a porta se abriu. Do lado de dentro,
havia um amontoado de roupas velhas de trabalho e botas de borracha sujas de terra. A pia
estava seca, assim como as botas.
Gabriel gesticulou para que Chiara entrasse e a acompanhou até a cozinha. Na bancada,
empilhavam-se pratos sujos e um cheiro de queimado empesteava o ar. Ele andou até a
cafeteira automática, que tinha a luz acesa. Na base da jarra de vidro, via-se um resto de café
da cor do alcatrão. A máquina devia estar ligada havia dias — o mesmo número de dias,
pensou Gabriel, que o cachorro teria passado sem comer.
— Ele tem sorte de a casa não ter pegado fogo — comentou Chiara.
— Não tenho certeza.
— De quê?
— De que Falcone tem sorte.

Free download pdf