ANJO CAÍDO

(Carla ScalaEjcveS) #1

usava para remover verniz de pinturas. Isso indicava que alguém o limpara havia pouco
tempo, removendo terra e outras incrustações, provavelmente com uma solução de cloreto de
amônio. Mesmo um homem velho vivendo sozinho numa casa tão malcuidada teria
dificuldades em ficar perto desse cheiro por mais de alguns minutos. Ele teria que manter uma
instalação separada onde pudesse deixar objetos por longos períodos de tempo, sem o perigo
de serem descobertos por alguém.
Gabriel colocou o pedaço de cerâmica no bolso do casaco e olhou pela janela, na
direção do anexo em ruínas nos fundos da propriedade. Andando de um lado para o outro, com
a cabeça baixa e as orelhas para trás, estava o cachorro de Falcone. Gabriel suspirou. Foi
para a cozinha, encontrou uma tigela grande e começou a enchê-la com qualquer coisa que
parecesse remotamente comestível.
Havia dois cadeados, ambos de fabricação alemã e enferrujados pela chuva. Gabriel
os arrombou enquanto o cão devorava com avidez uma mistura de atum em lata, favas,
corações de alcachofra e leite condensado. No momento em que a porta se abriu, o animal
ergueu os olhos por um instante, mas não prestou nenhuma atenção nos dois entrando. Do lado
de dentro, o cheiro de ácido era opressivo. Gabriel tateou às cegas, uma das mãos cobrindo o
nariz e a boca, até encontrar o interruptor. No alto, uma fileira de lâmpadas fluorescentes
piscou e se acendeu, revelando um laboratório de nível profissional construído para o trato e
armazenagem de antigüidades saqueadas. A limpeza e organização contrastavam com o resto
da propriedade. Um objeto parecia deslocado, uma barra de ferro que parecia uma lança,
suspensa horizontalmente num par de ganchos. Gabriel examinou os traços de lama perto da
ponta. Era da mesma cor e consistência que a das botas.
— É um spillo — explicou Chiara. — Os tombaroli usam isso para encontrar câmaras
funerárias subterrâneas. Eles o enfiam no chão até escutarem a batida característica de uma
tumba ou uma casa romana. Aí levam as pás e retroesca— vadeiras e pegam o que
conseguirem encontrar.
— E em seguida — completou Gabriel, olhando em volta trazem tudo para cá.
Ele andou até a mesa de trabalho de Falcone. Branca e limpa, era similar às mesas no
laboratório de restauração dos museus do Vaticano. Numa ponta, havia uma pilha de
monografias acadêmicas tratando das antigüidades dos impérios romano, grego e etrusco — o
mesmo tipo de volumes que Gabriel vira no apartamento de Claudia. Um dos livros estava
aberto na imagem de um stamnos ático de pinturas vermelhas decorado com mênades.
Gabriel tirou uma foto da página aberta com seu celular antes de seguir para as
prateleiras imaculadas de cromo, repletas de antigüidades separadas por categoria: cerâmica,
utensílios domésticos, ferramentas, armas e pedaços de ferro que pareciam extraídos de
tempos imemoriais. Eram evidências de pilhagens numa escala massiva. Infelizmente, esse
crime nunca poderia ser desfeito. Removidas de seus arranjos originais, as antigüidades
diziam muito pouco sobre as pessoas que as construíram e usaram.
No fundo da construção, havia quatro grandes piscinas de aço inoxidável, com cerca de
um metro e meio de diâmetro por um metro de altura. Os três primeiros tanques continham
pedaços de cerâmica, estátuas e outros objetos claramente visíveis no líquido avermelhado.
Mas, no quarto, o ácido estava opaco e quase transbordando. Gabriel pegou o spillo e o

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