Morte em Viena

(Carla ScalaEjcveS) #1

Não é possível falar de tudo o que se passou durante os dois anos
seguintes. Algumas coisas não consigo lembrar. Algumas coisas decidi
esquecer. Havia um ritmo implacável em Birkenau, uma crueldade
monótona que corria sob um apertado e eficiente horário. A morte era uma
constante, no entanto até a morte se tornou monótona.
Somos rapados, não só na cabeça, mas em todo o lado, braços,
pernas, até nos pêlos púbicos. Eles não parecem importar-se se a tosquia
nos corta a pele. Eles não parecem ouvir os nossos gritos. É-nos atribuído
um número e tatuado no nosso braço esquerdo, mesmo por baixo do
cotovelo. Cheguei a ser Irene Prankel. Agora sou uma ferramenta do Eeich
conhecida por 29395. Pulverizam-nos com desinfetante, dão-nos roupa de
prisão feita de lã áspera e grossa. A minha cheira a suor e sangue. Tento
não respirar muito fundo. Os nossos "sapatos" são bocados de madeira com
correias de couro. Não conseguimos caminhar com eles calçados. Quem
conseguiria? É-nos entregue uma tigela de metal e é-nos ordenado que
andemos sempre com ela. É-nos dito que se perdermos a tigela seremos
imediatamente abatidos. Acreditamos.
Somos levados a casernas indignas de animais. As mulheres que lá
nos esperam são qualquer coisa abaixo de humano. Estão esfomeadas, os
seus olhares são vagos, os seus movimentos são lentos e apáticos. Pondero
quanto tempo levará até eu ficar como elas. Um destes meio-humanos
aponta-me na direção de um beliche vazio. Cinco moças apertam-se numa
prateleira de madeira com apenas um colchão de palha infestado de bichos
como cama. Apresentamo-nos. Duas são irmãs, Roza e Regina. As outras
chamam-se Lene e Rachel. Somos todas alemãs. Todas perdemos os pais
nas filas de seleção. Formamos uma nova família nessa noite. Abraçamo-
nos e rezamos. Nenhuma de nós dorme.
Somos acordadas às quatro horas da manhã, seguinte. Acordarei
todos os dias às quatro da manhã durante os próximos dois anos, exceto
naquelas noites em que eles ordenam uma chamada noturna e fazem-nos
estar em sentido nos pátios gelados durante horas a fio. Somos divididas
em kommandos e enviadas para trabalhar. Na maioria dos dias, marchamos
para fora até os campos das imediações para apanhar areia para
construção ou para trabalhar nos projetos de agricultura do campo.
Nalguns dias construímos estradas ou deslocamos pedras de um lugar para
outro. Não passa um dia em que eu não seja espancada: uma paulada, um
pontapé nas costelas. A ofensa pode ser deixar cair uma pedra ou descansar
demasiado tempo na pega da minha pá. Os dois invernos são de um frio de
rachar. Não nos dão roupa extra que nos proteja do tempo, mesmo quando

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