Morte em Viena

(Carla ScalaEjcveS) #1

O restaurador fitou Tiepolo por cima do cornetto e abanou a cabeça
lentamente. Um ano antes, fora forçado a confessar o seu nome verdadeiro
e ocupação a Tiepolo.
O italiano preservou essa confiança nunca revelando a informação a
ninguém, embora de tempos a tempos, quando se encontravam sozinhos,
ele ainda pedisse ao restaurador para falar um pouco em hebraico, só para
não se esquecer que o lendário Mário Delvecchio era, na verdade, um
israelense do Vale de Jezreel chamado Gabriel Allon.
Uma súbita carga de água martelou o telhado da igreja. Do topo da
plataforma, mesmo no alto da abside da capela, parecia um rufar de
tambores. Tiepolo elevou os braços em direção ao céu em tom de súplica.
— Outra tempestade. Deus nos ajude. Eles disseram que a acqua
alta podia chegar ao metro e meio. Ainda não sequei da última. Adoro este
lugar, mas se isto continua assim não sei quanto tempo mais consigo
aguentar.
Tinha sido uma temporada particularmente difícil para marés-altas.
Veneza já tinha transbordado mais de cinquenta vezes, e ainda faltavam
três meses de Inverno. A casa de Gabriel já tinha inundado tantas vezes que
ele já tinha retirado tudo do piso térreo e estava a instalar vedantes à prova
de água nas portas e janelas.
— Morrerás em Veneza, como Bellini — disse Gabriel. — E eu
enterrar-te-ei debaixo de um cipreste em San Michele, numa enorme cripta
digna de um homem de sua dimensão.
Tiepolo parecia contente com essa imagem, embora soubesse que,
como a maioria dos venezianos modernos, teria de sofrer a indignidade de
um enterro em terra firme.
— Então e tu, Mário? Onde morrerás?
— com alguma sorte, será na altura e no lugar que eu escolher. É o
máximo que um homem como eu pode aspirar.
— Só te peço um favor.
— O quê?
Tiepolo fixou o olhar na pintura restaurada e disse:
— Acaba o retábulo antes de morreres. Deve-lo a Giovanni.


AS SIRENES DE ENCHENTE no alto da Basílica de São Marcos
ressoaram pouco depois das quatro da tarde. Gabriel limpou os seus
pincéis e a sua paleta apressadamente, mas quando desceu do andaime e
atravessou a nave até o portão da frente, as ruas já estavam inundadas com

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