Morte em Viena

(Carla ScalaEjcveS) #1

vários centímetros de água.
Voltou para dentro. como a maioria dos venezianos, ele possuía
vários pares de galochas guardadas em pontos estratégicos da sua vida,
prontas a serem usadas a qualquer momento. O par da igreja era o seu
primeiro. Fora-lhe emprestado por Umberto Conti, o mestre restaurador de
Veneza a quem Gabriel servira como aprendiz. Gabriel tentara inúmeras
vezes devolvê-las, mas Umberto não as aceitava de volta. Fica com elas
Mário, juntamente com os ensinamentos que te passei. Serão úteis,
prometo.
Colocou as velhas e desbotadas botas de Umberto e vestiu uma
capa verde à prova de água. Pouco depois vagueava com água pelas canelas
na Salizzada San Giovanni Crisostomo como um fantasma verde-azeitona.
Na Strada Nova, as pontes de madeira, conhecidas como passerelle,
já haviam sido retiradas pelos trabalhadores camarários: um mau sinal,
sabia Gabriel, pois isso significava que se previa uma inundação tão severa
que as pontes poderiam ser levadas pela água.
Quando chegou ao Rio Terra San Leonardo, a água quase lhe
entrava nas botas. Virou numa ruela calma, à exceção do bater das águas, e
seguiu até uma ponte de madeira provisória para peões por cima do Rio di
Ghetto Nuovo. Um circulo de casas não iluminadas surgiu à sua frente,
dignas de nota por serem mais altas que qualquer outras em Veneza.
Avançou com dificuldade por uma passagem enlameada e foi dar a um
largo amplo. Um par de estudantes yeshiva barbudos com as franjas das
suas tallit katan balançando nas calças cruzou o seu caminho, atravessando
o largo inundado em bicos de pés em direção à sinagoga. Gabriel virou à
esquerda e dirigiu-se à entrada do número 2899. Numa pequena placa de
bronze lia-se COMUNITÀ EBRAICA DI VENEZIA: COMUNIDADE JUDAICA
DE VENEZA. Tocou à campainha e foi saudado pela voz de uma velha
senhora no intercomunicador.
— É Mário.
— Ela não está.
— Para onde foi?
— Foi dar uma ajuda na livraria. Uma das moças está doente.
Avançou alguns passos pela entrada de vidro e baixou o seu capuz.
À sua esquerda estava a entrada do modesto museu do gueto; à
direita uma pequena, mas convidativa, livraria iluminada por luzes quentes
e brilhantes. Uma moça de cabelo louro curto estava empoleirada num
banco por trás do balcão, contando apressadamente o dinheiro da
registradora antes que o pôr do Sol a impossibilitasse de lidar com o

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