Morte em Viena

(Carla ScalaEjcveS) #1

há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a
sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos
presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da
equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto
noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido
com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos
estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava
autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes,
eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver
sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As
minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o
tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele
não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre
um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer
que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo
judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar
as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não
conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha
dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até
que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe
tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar.
Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha
arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava
preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele,
como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para
Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na
Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma
maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha
carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro.
Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria
dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria
oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não
tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo
era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria

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