Morte em Viena

(Carla ScalaEjcveS) #1

uma mulher que posa para um retrato. Ela parecia dar as boas-vindas à
morte. Tinha-a finalmente salvo dos tormentos que a violentavam dentro
da sua memória.
Tinha-o amado? Sim, pensava ele agora, mas tinha-se cercado de
paredes e ameias que ele nunca conseguiria trepar. Ela era dada à
melancolia e a mudanças de espírito violentas. Não dormia bem de noite.
Não conseguia mostrar prazer em ocasiões festivas nem tomar parte em
comidas e bebidas requintadas. Usava sempre uma ligadura no braço
esquerdo, por cima dos desbotados números tatuados na pele. Referia-se a
eles como sendo a marca da fraqueza judaica, o seu emblema à vergonha
judaica.
Gabriel seguiu pintura para estar mais perto dela. Ela rapidamente
sentiu isso como uma intrusão não autorizada ao seu mundo privado;
então, quando os seus talentos amadureceram e começaram a desafiar os
dela, ela invejou os seus dons. Gabriel empurrou-a para novas alturas. A sua
dor, tão visível em vida, encontrava expressão no seu trabalho. Gabriel
cresceu obcecado com as imagens de pesadelos que fluíam da memória
dela para as telas e começou à procura da origem.
Na escola ouvira falar de um lugar chamado Birkenau. Perguntou-
lhe sobre a ligadura que ela normalmente usava no braço esquerdo, sobre
as blusas de manga comprida que ela vestia, mesmo com o calor de
fornalha que fazia no Vale Jezreel. Perguntou o que lhe tinha acontecido
durante a guerra, o que tinha acontecido aos seus avós. À partida ela
recusou-se, mas finalmente, debaixo do seu constante ataque de perguntas,
ela compadeceu-se. A sua narrativa era apressada e relutante; Gabriel,
mesmo jovem, era capaz de detectar o tom evasivo e mais de um traço de
culpa. Sim, ela estivera em Birkenau. Os seus pais tinham sido assassinados
no dia em que lá chegaram. Ela tinha trabalhado. Ela tinha sobrevivido. E
era tudo. Gabriel, sedento de mais detalhes sobre a experiência da mãe,
começou a conjurar todo o tipo de cenários para justificar a sobrevivência
da mãe. Também ele se começou a sentir envergonhado e culpado. O seu
sofrimento, como um malefício hereditário, estava deste modo a passar
para a geração seguinte.
O assunto nunca mais voltou a ser discutido. Era como se uma porta
de aço se tivesse fechado, como se o Holocausto nunca tivesse acontecido.
Ela caiu numa depressão prolongada e esteve acamada por muitos dias.
Quando finalmente emergiu, retirou-se para o seu estúdio e começou a
pintar. Trabalhou inflexivelmente noite e dia. Uma vez, Gabriel olhou pela
porta entreaberta e encontrou-a esparramada no chão, as mãos manchadas

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