Folha de São Paulo - 24.10.2019

(C. Jardin) #1

aeee


ilustrada


C6 Quinta-Feira, 24 DeOutubrODe 2019


Filme sobre Joana D’Arctem músicaeletrônica


atriz de dez anos vivefase finaldaheroína levadaàfogueiraemsegunda incursão de brunoDumont na vida da santa



  • BrunoGhetti


CannesOcinematem umfas-
cínio peculiar porJoana d’Arc.
Aheroína francesa, que no sé-
culo 15 foiparaafogueiraapós
tentarexpulsar os ingleses da
França (edepois virousanta),
já inspiroumaisde umacente-
na de produtos audiovisuais.
Sóofrancês Bruno Dumont
já levouapersonagemàtela
duasvezes.Aprimeirafoi em
2017 ,com “Jeannette:AInfân-
cia deJoanad’A rc”, contandoos
primeiros anosdaDonzela de
Orléans. Agora,retomaaper-
sonagem em “Joana d’Arc”,des-
tacando seusmomentos finais.
ComtantasJoanas,qualosen-
tidode maisuma no cinema?
“É preciso dar modernida-
deaessa história universal”,
disse Dumont àFolha,noúl-
timoFestivalde Cannes,em
maio, quandoolongaestre-


oufora dacompetição.“Joa-
naéamais espiritual das me-
táforassobreacondiçãohu-
mana. Épor isso que os ci-
neastastantoseinteressam
por ela.Teveumavidacheia
demisticismo.Minhatarefa
étornar esse mistériopalpá-
vel, darformaaele.”
Eéjustonaformacomo sua
vidaérevisitada que asJoanas
de Dumont se diferenciam das
demais.“Jeannette”era uma
espécie de ópera-rock de fun-
do de quintal, comJoanacan-
tando (seríssima) suas moti-
vações religiosasenquantofa-
zia movimentoscomocorpo
comcoreografias heavy metal.
Esteticamente, eratãoex-
perimental quecolocavaoes-
pectador na embaraçosapo-
sição de nuncasaber se esta-
vadiantedeumaobra-prima
ou de uma fraude.
Nonovofilme,ofrancês

voltaaumestilo igualmen-
teaudacioso,sóqueagora
commúsicaeletrônicaem
vezdometal.Énovamente
uma apostaemuma inusita-
da mescla em queasofistica-
çãofílmica divideespaçocom
uma encenação simplória.
Se olongapor vezessugere
teatrinho decolégio,emal-
guns momentosatingeaex-
celência dos melhores dra-
mas de tribunal.Eaconvic-
çãocom que Dumontexpres-
sa suasousadiasésempread-
mirável —não ficamuitodis-
tantedaféqueaprópriaJo-
ana d’Arctinha em sua luta.
“Oreal,ohistórico, nãome
interessamemabsoluto. Oque
realmenteimporta éoque a
históriadeJoanatemdeuni-
versal.Asatuaçõesnão sãore-
alistas justamenteporque que-
ro queopúblicojamaisache
que estávendo algohistórico,

algoquesoeexatamenteco-
mo aconteceu”,diz odiretor.
Provadisso: para aprotago-
nista, escolheu umagarota de
dez anos —sendoque, na épo-
ca em que se passaofilme,Joa-
na já tinha 19 .ÉapequenaLise
LeplatPrudhomme,que inter-
pretouapersonagem criança
em“Jeannette”. SegundoDu-
mont,aideia inicial eraesca-
laraamadoraJeanneVoisin,
quetinhasidoaJoana adoles-
centenaquele mesmo filme.
“Mas ela mostroureservas.
Nãoquiscortar oscabelos,
andaracavalo... desisti. Aí a
ideia de usarapequena me
apareceu. Ela encarna ainda
melhorainocência,aenergia
incontida.Eofato de sertão
fisicamentediminutaamplia
oladopoéticodofilme”,diz.
Defato,aidade nuncaim-
pediu personificaçõescon-
vincentes da heroína.Em

“O MartíriodeJoanad’Arc”
( 1928 ), de CarlT.Dreyer, Ma-
riaFalconetti já tinha 35 anos,
eIngrid Bergman já beirava
os 40 quandofilmou“Joana
d’Arc” ( 1954 ), deRobertoRos-
sellini. “Poderiaatémesmo
ser vivida por umgaroto.É
uma questão simbólica, não
histórica”,explicaDumont.
Oclímax dolonga,amagis-
tral sequência do julgamento,
foifilmadona imponenteca-
tedral de Amiens,nonorte da
França. Ali, em meio ao elenco
amador,surge um ídolo fran-
cês: ocantor Christophe,cé-
lebrenos anos 1960 comohit
“A line”.Algumas dascanções
são assinadas por ele.
Oroteiroadaptauma peça
do escritornacionalistafran-
cêsCharles Péguy. “Pode ser
um autor difícil, mas emfor-
macantada, ficamaispalatá-
vel. Desdesempre,amúsica

foiusada pelaIgreja paraaju-
dar pessoas mais simplesater
acessoauma vidaespiritual”,
dizocineasta, dando pistas so-
bresuas intenções musicais.
Podeatéser que, paraal-
guns,atentativasurtaum
efeitooposto, cortando qual-
quer chancedevínculocom
olonga. Mas paraquem em-
barcanaaventuraartística,
aexperiênciaérica. Dumont
mais umavezprova que, cri-
ativamente,ocinemaainda é
uma arte longedeseesgotar.

Joanad’Arc
França, 2019. Direção: bruno Dumont.
Com: LiseLeplat Prudhomme,
annick LavievilleeJustineHerbez.
14 anos.MostradeSP:qui. (24),
às 15h45, noreserva Cultural(av.
Paulista, 900);seg. (28),às16h40,
no espaçoitaú-FreiCaneca (r.Frei
Caneca, 569);ter. (29), às 19h15, no
Petrabelas artes(r. da Consolação,
2.423); qua.(30), às 21h20, no espaço
itaú-augusta(r. augusta, 1.475)

Tempo da memóriamarca longa chinêssobretragédiafamiliar


cinema
AtéLogo, Meu Filho
*****
China, 2019. Direção: Com: ai
Liya, Du JiangeLiJingjing.16anos.
MostradeSP:qui.(24), às 18h20, no
reservaCultural(av.Paulista,900);
dom.(27), às18h, noespaçoitaú-
FreiCaneca(r. FreiCaneca, 569)


  • Cássio Starling Carlos


Amortedeuma criançaéo
pontodepartida trágicode
“A téLogo, Meu Filho”. Mas
omodocomo esteaconteci-
mentodecisivoéapresenta-
do,primeiro, àdistância,de-
pois,fora decampo,introduz
uma estéticadiscretaque as
três horas de duração do fil-
me obedecemcom rigor.
Emvezdeexplorarosefei-
tostraumáticos para ocasal
YaijuneLyiun da perdadofi-
lho,orelato fazumdesviocom
umacena defamília na qualre-
conhecemos os pais, mas não
sabemos definir queméoga-
roto maisvelho presenteali.
Esteregistrodaintimidade
compostoapartirde um mo-
vimento suave dacâmeraque
revela oespaçodomésticoin-
troduz umelemento,afamí-
lia,central na história.Ogaro-
to emcena,no entanto,éum

ponto cego na trama. Será ou-
trofilho? Ouamorte terá sido
imaginação,uma pistafalsa?
Oartifícioadotado pelo di-
retorWang Xiaoshuaiajuda a
alertaroespectadordesaten-
to paranãoconfiar nalineari-
dade. Logoconfirmamos que
as cenas não seguemaordem
cronológicaequeotempo da
narrativaéassociativo ouevo-
cativo, talcomoamemória.
Ofuncionamentoindireto
eindeterminado da memória
substituiodahistóriaregula-
da porfatos, causaseefeitos.
Assim,“A té Logo,MeuFilho”
resgataas experiências indi-
viduais,oque passa desperce-
bido quando as narrativas são
institucionalizadas nos livros
enas versõesoficiais.
Osefeitosdastransforma-
ções políticaseeconômicas
da China apósamortedeMao
Tsé-tungaparecemprojetadas
em diversos momentosdo
drama deYaijuneLyiun, an-
tesedepoisda mortedofilho.
Ocasal viveu, quandojovem,
oimpactodaRevoluçãoCultu-
ral, programa dereeducação
que significouahumilhação
ouaeliminaçãodemilhões
de indivíduos “oponentes”.
Quando adultos,Yaijune
Lyiun sofrem diretamenteos

efeitos da política decontrole
populacional que proibiu os
casais deterumsegundo filho.
Maisvelhos, os personagens
têmdeseadequar ao novo
modeloeconômicoque elimi-
na seus empregos,obrigando-
os areinventarasobrevivên-
cia.Ofilho adotivotambém
representaamudançadeva-
lorescomumcomportamen-
to rebeldeeconsumista.
Em paraleloàcondição pas-
sivados protagonistas,ofilme
pontuaamudançadestatus
docasal HaiyaneYingming.
MelhoramigadeLyiun, Haiy-
an eratambémrepresentante
local doPartido Comunista,
portanto, das leis que impe-
democasal defazerescolhas.
Otempolongo no qualatra-
maéambientadaaparecena
formadesignos.Opassadore-
vela-se, porexemplo,nos uni-
formes, quetornavam homo-
gêneosomundo do trabalho e
odocotidiano.Nopresente, ele
aparecenas estátuas de Mao
postasdiante deshoppings.
Masénotempo subjetivo
queofilmeencontrasua lin-
guagemesua grandeza.Nele,
abole-seadistância entreapo-
líticaeaintimidade,eahis-
tória deixa de parecer neutra
esetraduz em puraemoção.

Cena do filme chinês‘Até
Logo,Meu Filho’ Divulgação

Aosdez anos, LiseLeplat Prudhommefoiescolhidaparadar vidaaJoanad’ArcnofilmedeBruno Dumont Divulgação

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