Público - 15.10.2019

(C. Jardin) #1
18 • Público • Terça-feira, 15 de Outubro de 2019

“Ainda hoje o meu


filho de cinco anos


disse: ‘Ó mãe,


tantas árvores no


chão, que tristeza’”


Dois anos depois dos incêndios de Outubro, especialistas


lamentam que não seja conhecido um plano de reÅorestação


da Mata Nacional de Leiria. E queixam-se de falta de


investimento no pinhal, cuja madeira ardida rendeu 13,


milhões de euros. Os eucaliptos vão ganhando terreno


P


ara chegar a São Pedro
de Moel, um lugar com
vista para o Atlântico
na freguesia da Mari-
nha Grande, é preciso
atravessar a Mata
Nacional de Leiria, ou
o que resta dela depois
do incêndio de 15 de
Outubro de 2017. A
estrada contorna hectares e hectares
de dunas descobertas onde a vegeta-
ção que entretanto cresceu roça o
meio metro de altura. A areia que
cobre os terrenos é cinzenta, uma
característica do solo pobre desta
região. Em alguns talhões, a vista
desafogada é cortada pelos troncos e
ramos negros das árvores que perma-
necem de pé, aglomerados de estacas
de madeira queimada que preen-
chem o vazio recordando o dia em
que mais de 500 incêndios assolaram
o norte e o centro de Portugal.
É difícil imaginar como era este
pinhal antes do incêndio. Estamos no
Outono e à nossa frente o verde da

nova vegetação ainda luta contra o
negro deixado pelo fogo.
Sónia Guerra, bióloga e mestre em
Ciências das Zonas Costeiras pela Uni-
versidade de Aveiro, evita percorrer
estas estradas. Marinhense, é descen-
dente de quem durante muitos anos
cuidou deste património único no
país. O avô, “um homem que mesmo
sem saber ler nem escrever, passava
no pinhal e sabia o volume de madei-
ra que ali estava e quanto é que valia”,
chegou a ser vigilante Çorestal no
Verão, e as avós, como “muitas
mulheres da região”, trabalharam ali
à jorna semeando pinhão.
“Eu já não vou ver esta mata como
foi”, desabafa. “Ainda hoje de manhã,
quando a atravessei com o meu Ælho
de cinco anos, ele disse-me: ‘Ó mãe,
tantas árvores no chão, que tristeza.’
Eu até tento desviar o assunto por não
querer maçá-lo com estes temas que
para mim são difíceis, mas ele per-
gunta. Não é fácil explicarmos porque
há tantas árvores tombadas, e para
onde é que foram os animais, e por-
que é que há árvores pretas de pé.”
Os fogos de Outubro de 2017, que
mataram 50 pessoas, consumiram
86% da Mata Nacional de Leiria, 9476

pletar um ciclo semelhante serão
precisos cerca de 150 anos.
Dos mais de nove mil hectares ardi-
dos, 4482 são considerados pelo Ins-
tituto de Conservação da Natureza e
Florestas (ICNF) como tendo material
lenhoso com valor comercial. A
maior parte, 84,8%, já foi vendida —
1.233.659 árvores que renderam ao
estado 13,6 milhões de euros. Se
somarmos a este valor o rendimento
resultante da alienação de madeira
ardida proveniente das matas públi-
cas e perímetros Çorestais, chegamos
aos 23 milhões.

Pragas atacam pinheiros
Até ao momento, foi investido um
montante superior a 1,1 milhões de
euros no processo de reÇorestação da
Mata Nacional de Leiria e foram lan-
çados concursos para operações adi-
cionais de rearborização no montan-
te de cerca de 2,5 milhões de euros.
Em curso estão ainda concursos no
valor de 3,5 milhões para operações
adicionais de rearborização das áreas
ardidas e recuperação de povoamen-
tos afectados pela tempestade Leslie
nas restantes áreas de matas públicas.
Tudo somado, o Estado prevê investir

7,1 milhões de euros. São números
que não convencem Sónia Guerra. A
especialista integra o Observatório do
Pinhal do Rei, um grupo constituído
por especialistas e representantes da
comunidade local que foi criado pelo
Governo, em Abril de 2017, para
“interpretar, acompanhar e monito-
rizar o Plano de Recuperação do
Pinhal do Rei”.
“Foram retirados daqui milhões ao
longo de décadas, continuam a ser
retirados. E o que é que vem? O que é
investido aqui?”, questiona. “O con-
celho tem de ser compensado por
este prejuízo e o investimento que se
fez em dois anos não traz às pessoas
essa ideia de compensação.”
O observatório que Sónia Guerra
integra publicou em Janeiro um pare-
cer sobre o Relatório do Programa de
Recuperação das Matas Litorais, da
Comissão CientíÆca igualmente cria-
da pelo Governo para produzir mate-
rial técnico e cientíÆco que sirva de
apoio à gestão das matas litorais. Nove
meses depois, lamentam não ter tido
qualquer resposta da tutela.
Neste parecer, são salientadas as
medidas que o observatório conside-
ra prioritárias para a recuperação do

Teresa Abecasis (texto) e
Adriano Miranda (fotografia)

SOCIEDADE


hectares de um total de 11.021. Empur-
radas pelo furacão Ofélia, as chamas
varreram três matas nacionais e qua-
tro concelhos, percorrendo mais de
50 quilómetros. Uma investigação da
Polícia Judiciária de Leiria concluiu,
segundo e edição de sábado do
Expresso, que o incêndio foi causado
por dois fogos que tiveram “mão
humana”. Uma mulher de 68 anos vai
esta semana sentar-se no banco dos
réus do Tribunal de Alcobaça por ter
feito uma queimada em Burinhosa.
Chegou a ser apagada por 17 bombei-
ros. Mas um reacendimento provo-
cou a tragédia. Quem provocou o
outro fogo nunca se apurou.
Um pinheiro leva mais de 70 anos
até atingir a idade adulta e estar
pronto para ser cortado. No Pinhal
do Rei, como é conhecida localmen-
te a Mata Nacional de Leiria, os mais
de 11 mil hectares estavam divididos
por 342 talhões com pinheiros de
diferentes idades, desde o primeiro
ano de vida até à altura em que esta-
vam prontos para vender. A gestão
escalonada permitia que todos os
anos houvesse madeira para cortar
e árvores a crescer. O incêndio arra-
sou esta gestão e para voltar a com-

Pinhal de Leiria

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