Público - 15.10.2019

(C. Jardin) #1

26 • Público • Terça-feira, 15 de Outubro de 2019


Sem fumo branco à vista nas negocia-
ções entre o Governo britânico e
Bruxelas e com a Câmara dos Comuns
incapaz de formar maiorias para
qualquer um dos caminhos do “Bre-
xit”, a Câmara dos Lordes acolheu
ontem o acto solene de inauguração
de uma sessão legislativa que aparen-
ta já estar condenada ao fracasso.
Com o cenário de eleições antecipa-
das cada vez mais próximo, o progra-
ma do executivo que Isabell II leu na
câmara alta do Parlamento adquiriu
contornos de manifesto eleitoral do
Partido Conservador para o mais que
provável combate nas urnas. A opo-
sição não tem dúvidas: o discurso da
rainha foi uma “farsa” e um “exercí-
cio de propaganda”.
“Nunca existiu farsa maior do que
haver um governo em minoria, e com
um registo de 100% de derrotas na
Câmara dos Comuns, a apresentar
uma agenda legislativa que sabe que
nunca poderá ser levada a cabo neste
Parlamento”, criticou Jeremy Corbyn,
líder do Partido Trabalhista. E denun-
ciou a instrumentalização política do
evento real: “Aquilo a que assistimos
foi a uma emissão televisiva político-
-partidária a partir do trono real.”
Manda a tradição constitucional
britânica que seja o monarca a apre-
sentar as prioridades de Downing
Street, lendo um documento escrito,
precisamente, em Downing Street.
Não espantou, por isso, que o discur-
so da rainha tenha cumprido, na
íntegra, a narrativa que o Governo de
Boris Johnson deÆniu para o futuro
político do país, desde que o primei-
ro-ministro substituiu Theresa May:
a consumação do “Brexit” a 31 de
Outubro. Foi isso que Isabel II foi
dizer ao Parlamento.
“A prioridade do meu Governo
continua a ser garantir a saída do
Reino Unido da União Europeia a 31
de Outubro”, leu a rainha, antes de
se lançar à apresentação de 26 pro-


Oposição denuncia instrumentalização


política da inauguração da sessão


legislativa no Parlamento britânico,


por Isabel II, face ao previsível cenário


de eleições antecipadas


postas de lei do executivo, muitas
delas especiÆcamente concebidas
para depois do divórcio britânico
com a Europa.
Isabel II deu conta da intenção do
Governo de avançar com reformas
no sistema de imigração — para limi-
tar a liberdade de movimentos de
cidadãos da União Europeia — com
propostas para endurecer a moldura
penal para determinados crimes e
com promessas de investimento no
Serviço Nacional de Saúde, na polí-
cia, na Educação e no acesso à Inter-
net. Revelou ainda que quer apertar
os requisitos para o exercício do
direito de voto, exigindo identiÆca-
ção com fotograÆa.
A rainha também referiu que
Johnson está determinado em encon-
trar soluções para os sectores que
estão, neste momento, sob a alçada
europeia, como a política comercial,
agrícola e de pescas, e que o Governo
quer garantir que o Reino Unido
“continua a ter um papel de lideran-
ça nas questões internacionais” e na
“resolução dos mais complexos desa-
Æos securitários”.

Irrelevante?
Apesar de o Reino Unido se encon-
trar num dos momentos mais decisi-
vos da sua História, o discurso da
rainha tem tudo para Ægurar nos
registos como um dos mais desinte-
ressantes e menos relevantes dos
últimos tempos. Precisamente por-
que o calendário não deixa antever
o sucesso da estratégia do Governo,
nem a sua capacidade para cumprir
o programa a que se propõe. Não tem
sequer maioria parlamentar, pelo
que tudo indica que o discurso vai ser
chumbado pelos deputados — pela
primeira vez desde 1924.
Boris Johnson teima que é possível
cumprir a promessa de retirar o país
da UE até ao Ænal do mês e promete
ir até “às últimas consequências”
para o fazer — leia-se, avançar para a
saída desordenada. Mas primeiro
precisa de convencer os parceiros
europeus a abdicarem das suas linhas

Reino Unido


António Saraiva Lima


Discurso da rainha virou


manifesto eleitoral conservador


MUNDO


vermelhas — particularmente sobre
a fronteira irlandesa — e a assinarem
um novo acordo de saída no Conse-
lho Europeu que se reúne quinta-fei-
ra e sexta-feira.
Mesmo triunfando em Bruxelas,
o primeiro-ministro tem ainda de
fazer aprovar o acordo no Parla-
mento britânico. Se vier da Bélgica
de mãos vazias, está obrigado pela
legislação aprovada pelos deputa-
dos no mês passado a pedir um
adiamento do “Brexit” — hipótese
que continua a negar veemente-
mente e que poucos sabem como
pode contornar.

A solução mais óbvia para sair do
impasse político é o agendamento de
eleições antecipadas. E, por isso, a
leitura dos analistas ao conteúdo do
discurso da rainha é que o mesmo
tratou de deÆnir as traves mestras do
manifesto eleitoral tory para uma
votação que se adivinha próxima.
“A rainha pode ter dito que a prio-
ridade do Governo é sair [da UE] a 31
de Outubro, mas é impossível alguém
ter certezas de que isso vai acontecer.
Este é um discurso da rainha de um
universo paralelo, no qual Boris
Johnson consegue um acordo com
Bruxelas até ao Ænal da semana e con-

Segundo a tradição


constitucional


britânica, o


monarca lê o
programa do

governo na


Câmara dos Lordes


e inaugura a sessão
legislativa no

Parlamento

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