Público - 15.10.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 15 de Outubro de 2019 • 29

MUNDO


É perigosa a democracia em


andamento em Moçambique


Material eleitoral e observadores eleitorais são transportados em camiões de caixa aberta

A espera vai-se prolongando. Dezenas
de pessoas aguardam no Centro Cívi-
co da Associação Moçambicana para
o Desenvolvimento e Democracia
(Amode), em Chongoane, na provín-
cia de Gaza, pelos seus crachás de
identiÆcação como observadores elei-
torais. Uma semana depois do assas-
sínio de Anastácio Matavel, director
executivo do Fórum das Organizações
da Sociedade Civil (Fonga) e represen-
tante na província de Gaza da Plata-
forma de Observação Eleitoral Con-
junta — Sala da Paz, há rostos apreen-
sivos, expressões de inquietude e
muita vontade de cumprir o dever.
Se na casa de Matavel os olhares
cabisbaixos revelam as marcas da dor
de perder um pai de família, entre os
observadores que ele formou, que o
conheceram ou ouviram falar, a fren-
te altiva mostra resistência e perseve-
rança. “Estamos Ærmes”, diz Vânia da
Felícia, coadjuvada por Silvestre
Manavé, “estamos motivados”. Todos
concordam que “é um desaÆo”,
sabem que “é importante, muito
importante” cumprirem o seu papel
de observadores eleitorais.
Gaza é território do partido no
poder, um feudo da Frelimo que em
2014 deu ao actual Presidente, Filipe
Nyusi, que se recandidata no cargo,
88% dos votos. “Dantes era difícil
encontrar uma mesa com dez votos
da oposição, agora já não é assim”,
diz uma observadora. Quando a elei-
ção parece mais renhida que nunca,
a julgar pelas últimas municipais
intercalares, no ano passado, em que
a Frelimo só teve 51% dos votos, Gaza
pode ser a diferença entre a vitória e
a derrota nas eleições de hoje.
O recenseamento eleitoral foi mui-
to contestado pela oposição e denun-
ciado pelas organizações da socieda-
de civil. Segundo o Centro de Integri-
dade Pública, que desde 2005
acompanha os processos eleitorais
em Moçambique, Gaza ganhou mais
de 300 mil eleitores “fantasmas”.
O papel dos observadores será fun-
damental. Mas não vai ser fácil. Na


te, apesar de logo ser emendado pelos
outros: “Tu sentes medo, nós esta-
mos empenhados.”
Sónia DelÆno é mais realista: “Esta-
mos com medo, mas independente-
mente do que se passa, temos de fazer
amanhã [hoje]. “Não podemos desis-
tir, é o nosso trabalho, temos de o
fazer”, refere Nicholson Cuna. Um
observador eleitoral recebe 4200
meticais de salário e 1000 meticais de
subsídio de transporte e almoço:
5200 meticais, equivalente a 75 euros.
É mais que o ordenado mínimo na
função pública (64,75 euros), e só por
um dia de trabalho, mas insuÆciente
para não pensar duas vezes quando
um dos activistas mais conhecidos da
província é morto com dez tiros.
Ao mesmo tempo que os observa-

dores aguardavam o almejado crachá,
o STAE (Secretariado Técnico de
Administração Eleitoral) enchia três
camiões de material (urnas, boletins
de voto) e toda a equipa de logística.
Polícias, MMV (membros da mesa de
voto) e todos os demais amontoados
na caixa aberta dos camiões, a maio-
ria em pé por falta de espaço para ir
sentado. Muitas dezenas de pessoas
no equilíbrio precário de um acidente
anunciado. Um movimento em falso
na picada por onde seguiram, traria
custos eleitorais (haveria mesas no
distrito de Manjacaze que não pode-
riam abrir), mas, sobretudo, custos
humanos. E estas eleições já levaram
o seu quinhão, com 44 mortos.

Moçambique vai a votos hoje e na província de Gaza, onde foi assassinado um activista, o PÚBLICO


viu o empenho dos observadores eleitorais em manter vivo o trabalho de Anastácio Matavel


Eleições


António Rodrigues, em


Gaza (texto), e Grant Lee


Neuenburg (fotografia)


sem a respectiva identiÆcação.
“Já sabia que haviam de nos blo-
quear”, desabafa a coordenadora dos
observadores.
A vontade, no entanto, é Ærme,
como dizem as T-shirts negras, man-
dadas fazer para homenagear o acti-
vista assassinado por agentes da polí-
cia: “Matavel morre! A causa vive!”
Um dos que a enverga é Nicholson
Cuna. Estudante de Engenharia Eléc-
trica na Universidade Eduardo
Mondlane, em Maputo. Para ele, há
observadores que depois da morte de
Matavel Æcaram com medo: “Podem
não ter desistido Æsicamente, mas
desistiram mentalmente. E se virem
irregularidades já não vão estar tão
empenhados.”
Há quem confesse o medo que sen- [email protected]

Amode em Chongoane, a 20km da
capital provincial, Xai-Xai, a espera
transforma-se em desalento: “Pedi-
mos 300 e tal crachás e só recebemos
oito”, conta Sónia DelÆno, a coorde-
nadora, que é interrompida a todo o
momento pelos observadores, a
maioria jovens, muitos universitários,
cansados de tanto aguardar.
“Acho que estão a tentar evitar que
sejamos observadores”, refere.
“Antes, disseram-nos que as máqui-
nas estavam avariadas, agora que
temos de esperar”, explica Sónia Del-
Æno. “Mesmo assim, não vamos desis-
tir, com ou sem crachá.”
Uma expressão de vontade que
pode ser mais frustração que outra
coisa. As autoridades avisaram que
nenhum observador será autorizado
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