Público - 15.10.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 15 de Outubro de 2019 • 37

INICIATIVAS


O País das Uvas, de Fialho de Almeida — o mais


célebre eugenista português


O País das Uvas (1893), colectânea de
contos de Fialho de Almeida,
envolve o leitor num universo
habitado por Æguras humildes,
fragilizadas pela aspereza de uma
vida marcada pelas privações e pela
dureza do trabalho. São inúmeros os
corpos invisíveis, provenientes das
classes sociais mais desfavorecidas,
que circulam pelas paisagens
desenhadas pelo autor através da
escrita. Tanto nas ruas de Lisboa,
como nos campos ardidos pelo sol
do Alentejo, Fialho de Almeida
encontra aquele material humano,
vivo e pulsante, necessário para
satisfazer a sua inesgotável paixão
pela realidade.
A partir dessas duas geograÆas
especíÆcas, o autor captura

fragmentos de um quotidiano hostil,
que molda a vivência e até os
próprios corpos das Æguras que as
habitam. O olhar de médico
desenvolve um papel fulcral na
escrita de um autor que costura as
suas reÇexões literárias a partir da
observação cientíÆca do real. A
estética do naturalismo aparece de
forma nítida, proliferando as
tensões estéticas características do
Ænal do século XIX. Tendências
expressionistas e alucinações
simbolistas convivem na escrita de
Fialho, transformando O País das
Uvas num universo estético e
estilístico complexo e ecléctico.
Apesar dessa pluralidade de
tendências, existe, no entanto, uma
profunda coerência que envolve não
apenas a sua escrita, mas também a
sua formação médica e as suas
reÇexões cientíÆcas. A observação
naturalista da realidade e uma certa
perspectiva decadente traduzem
em literatura a visão de mundo de
um autor considerado como o “mais
célebre eugenista português.”

Herdando os preconceitos
transformados em ciência pelo
chamado “racialismo centíÆco”, os
eugenistas, preocupados com o
melhoramento da “raça”, viam os
casamentos entre etnias e classes
diferentes como fonte de
degeneração. A partir dessa
perspectiva podem ser lidas diversas
passagens das obras de Fialho, como
as suas descrições dos pobres,
“monstros da fauna humana, que a
natureza recalca em soèrimento”,
ou como as opiniões do autor sobre
os alentejanos, raça “mal cruzada,
degenerada, raquítica”.
Apesar da honesta e vívida
compaixão perante o sofrimento e
as fatigas diárias dos camponeses e
das classes mais desfavorecidas,
evidente em O País das Uvas, não
existe, no médico--autor,
possibilidade de enxergar beleza
para além do corpo “saudável” e da
vida considerada como “digna”.
Ler a obra de Fialho de Almeida
signiÆca deparar-se com posições
colonialistas e racistas, expressas de

forma clara nas suas crónicas e
evidentes na sua prosa Æccional.
Nesse sentido, o valor documental
da obra do autor alentejano
ultrapassa a simples descrição
panorâmica da realidade
portuguesa da época. Ler Fialho
permite investigar todas aquelas
hierarquias interpretativas e de
valores que moldaram a acção
cientíÆca e política portuguesa
numa fase fulcral do
desenvolvimento colonialista do
Ocidente.
Nesse sentido, O País das Uvas,
assim como a obra completa do
médico-escritor, representa um
importante testemunho para
investigar pressupostos e dinâmicas
que não se esgotaram com a queda
dos fascismos e com o desmoronar
dos impérios coloniais, mas que
habitam ainda as realidades
contemporâneas.

Pesquisador italiano, doutor
em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade

No âmbito do seu 80.º aniversário a Ordem dos Médicos, o PÚBLICO e a Bela e o


Monstro homenageiam 14 médicos que se destacaram também como escritores:


Egas Moniz, Fernando Namora, Jaime Cortesão, Leite de Vasconcelos, Bernardo


Santareno, Fialho de Almeida, Júlio Dantas, Brito Camacho, Miguel Torga, Júlio Dinis,


Graça Pina de Morais, João de Araújo Correia, Abel Salazar e Miguel Bombarda


22 de Outubro
O País das Uvas Fialho de
Almeida
29 de Outubro
Eterno Feminino Júlio Dantas
5 de Novembro
As Pupilas do Sr. Reitor Júlio
Dinis
12 de Novembro
Por ahi fora Brito Camacho
19 de Novembro
Vindima Miguel Torga
26 de Novembro
O Delírio do Ciúme Miguel
Bombarda
3 de Dezembro
Na Luz do Fim Graça Pina
de Morais
10 de Dezembro
Um Estio na Alemanha Abel
Salazar
17 de Dezembro
Contos Durienses João de
Araújo Correia


Fialho de Almeida e O País das Uvas


Fialho de Almeida era Ælho de um
professor primário. Nasceu em Vila
de Frades (Vidigueira), em 1857 e
faleceu em Cuba, em 1911.
Aos nove anos, o pai tinha-lhe
ensinado o que podia. Enviou-o
então para Lisboa e inscreveu-o no
Colégio Europeu. Cinco anos
depois, as dificuldades económicas
da família obrigaram o moço a
abandonar os estudos e a
empregar-se numa farmácia situada
no Campo de Santana.
Fialho não guardou boas

recordações do estudo, nem do
emprego. Descreveu os tempos de
colégio como “cinco anos de
privações e de maus tratos” e
queixou-se amargamente da
alimentação, das instalações e das
condições de trabalho na botica.
Aos 18 anos, retomou os estudos
e preparou-se para entrar na Escola
Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Concluiria o curso em 1885.
Não fez uso do diploma
conseguido, nunca tendo exercido
verdadeiramente medicina.
Decidido a viver da escrita,
lançou-se na vida literária.
Em 1893, desposou uma herdeira
abastada de Cuba e regressou ao
Alentejo. A esposa não lhe chegou
a dar Ælhos. Faleceu no ano
seguinte, deixando o viúvo rico. O
jornalista fez-se lavrador, mas

continuou a publicar artigos em
jornais e a escrever contos.
Fialho de Almeida colaborou em
diversos jornais, inclusive
humoristas, e em variadas revistas.
Escreveu crónicas, folhetins,
críticas literárias e teatrais.
Tornou-se conhecido nos meios
jornalísticos e teatrais da capital
portuguesa. As suas críticas eram
aguardadas com ansiedade e algum
temor. Não nos deixou romances,
mas produziu diversos volumes de
contos: Contos (1881), A Cidade do
Vício (1882), Lisboa Galante (1890), O
País das Uvas (1893) e Madona do
Campo (1896).
Fialho foi contemporâneo de Eça
de Queirós e conhecia a sua obra.
Não tinha, contudo, feitio que lhe
permitisse abraçar o realismo já em
voga. Manteve-se próximo dos

ultrarromânticos e do “byronismo”.
Mergulhou na noite e na boémia.
Frequentava o Martinho e outros
cafés lisboetas.
Em O País das Uvas é bem patente
a heterogeneidade da escrita de
Fialho de Almeida. Nos três
primeiros capítulos, vê-se o escritor
excessivo, frenético, criador de
neologismos e apreciador de
estrangeirismos. Nos contos Os
pobres e O anão vamos dar com a
fusão do grotesco e do sublime.
Noutras histórias, como A velha,
Idílio triste e O almocreve e o diabo
encontramos a imaginação, a graça
e a ternura que ajudaram a
construir a fama de Fialho de
Almeida como contista.

Médico, escritor, presidente
da Sopeam

FOI RESPEITADA A OPÇÃO ORTOGRÁFICA DOS AUTORES

António Trabulo


Luca Fazzini

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