Público - 15.10.2019

(C. Jardin) #1
6 • Público • Terça-feira, 15 de Outubro de 2019

ESPAÇO PÚBLICO


apenas o momento alto da sua carreira
política: foi, para quem viveu aquela
campanha, uma festa de patriotismo e de
alegria. E teve, tal como a AD em seu tempo,
um impacto decisivo na mudança do ciclo
político em Portugal. Na verdade, isto é
raramente dito e mais raramente
reconhecido, as maiorias absolutas de Cavaco
Silva só foram possíveis porque a campanha
presidencial de Freitas do Amaral federou
todo o espaço que ia da direita até ao centro,
quiçá ao centro-esquerda. Sim, os hoje
nostálgicos da AD fazem tudo por obnubilar
isso, mas já a AD integrou generosamente os
“reformadores” (dissidentes do PS) e os
ecologistas do PPM
de Ribeiro Telles
(muito à frente, em
termos de defesa dos
valores ambientais,
da actual deriva
“animal-populista”
do PAN). Em 1979,
cada um destes
segmentos tinha
cinco deputados na
Assembleia, bem
acima da sua efectiva
radicação no
eleitorado. Sobre a
moderação e o
equilíbrio das
posições políticas de
Freitas do Amaral (e
já agora de Sá
Carneiro) não creio
que seja preciso dizer
mais.


  1. No plano
    estritamente
    proÆssional, pontiÆca
    o investigador, o
    professor, o


Freitas do Amaral:


o patriota cosmopolita


1.


Prometi que, na primeira
oportunidade, escreveria sobre
Freitas do Amaral. Devo-lhe isso,
especialmente pelo convívio mais
próximo nos três ou quatro anos
da viragem do século. E muito
mais importante, devo-lhe
porque Portugal — o Portugal que
ele tão ostensivamente amava —
lhe deve isso.


  1. A fundação do CDS, no contexto do
    processo revolucionário e da vertigem
    militar-socialista, representou um acto de
    ousadia e uma enorme prova de conÆança na
    viabilidade da democracia. Por um lado,
    Freitas do Amaral não teve receio de criar
    uma força política no espectro direito do
    leque partidário, assente nos valores na
    democracia-cristã. A ideologia
    democrata-cristã, só por si, garantia a
    moderação e congraçava a recusa de
    qualquer desvio de direita radical ou de cariz
    ditatorial ou populista. A capacidade de
    atracção de quadros pelo CDS e pela sua
    liderança foi absolutamente surpreendente, a
    ponto de ter feito do CDS um caso
    paradigmático de um “partido de quadros”.
    Por outro lado, a criação do partido
    signiÆcava um acto de fé na aÆrmação de uma
    democracia plural de tipo ocidental e, ao
    mesmo tempo, contribuiu activa e
    decisivamente para que ela se estruturasse e
    consolidasse. Não menos importantes foram
    a convicção e a boa fé com que, ao lado de
    Amaro da Costa, abraçou o projecto da AD.
    Também aqui, e mais uma vez, foi capaz de
    compreender como a formação de um
    projecto político de vocação maioritária com
    o eixo no centro-direita era o maior
    contributo para garantir solidez e
    autenticidade à democracia nascente. Não
    pode, em caso nenhum, passar despercebido
    o seu múnus governativo nas pastas dos
    Negócios Estrangeiros e da Defesa. Com
    efeito, também pelo prestígio de que gozava
    na União Europeia das democracias cristãs, o
    seu papel para a consolidação do nosso
    processo de adesão europeia foi notável. O
    “federalismo” europeísta era um dos pilares
    do seu credo político a que se manteve
    persistentemente Æel. Deve-se-lhe ainda o
    passo determinante da subordinação das
    Forças Armadas ao poder civil, vista por ele
    como um ingrediente indispensável à
    implantação plena da democracia. Nunca
    será de mais, aliás, encarecer a devoção e o
    respeito que votava às forças militares e ao
    seu papel histórico na aÆrmação
    nacionalidade e da independência.

  2. O seu projecto de candidatura
    presidencial — P’rá Frente Portugal — não foi


pedagogo, o formador de escola, o
jurisconsulto. A sua escrita — elegante, enxuta
e simples — brilhava pela racionalidade
cartesiana. O seu discurso oral, claríssimo e
distinto, era da ordem do eloquente. A visão
global e abrangente, que não se fechava no
direito, mas se abria à história e ÆlosoÆa, às
artes e à ciência, era própria do humanista, de
um humanista de Quinhentos ou Seiscentos.
A compreensão aberta e larga da universidade
está bem documentada no incentivo e no
ânimo que dava a todos os alunos e a todos
aqueles que orientava na obtenção de graus
académicos superiores. O progresso dos seus
discípulos e das suas disciplinas deixava-o
genuinamente feliz: o avanço da ciência era
para ele motivo de alegria. Era
profundamente aberto à inovação e cultivava
a curiosidade e o espanto — o espanto que está
nos primórdios da ÆlosoÆa — como poucos. O
culto irrenunciável da racionalidade fazia com

O culto
irrenunciável
da
racionalidade
fazia com que
nunca cedesse
ao preconceito,
às verdades
estabelecidas,
à tradição pela
tradição

Eurodeputado (PSD). Escreve à terça-feira
[email protected]

que nunca cedesse ao preconceito, às
verdades estabelecidas, à tradição pela
tradição. É justamente este traço de
personalidade que explica a fundação da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa. Também aí Æcaram cunhadas a sua
ousadia e a sua coragem, o voluntarismo
sensato a que a ponderação racional dos
argumentos sempre o conduzia. Com esse
gesto, rompeu e inovou; e provocou uma
mudança coperniciana no ensino do Direito
em Portugal. Por muito que isso custe aos
mais conservadores e tradicionalistas, depois
desse rasgo, nada Æcou como dantes em
nenhuma das mais vetustas escolas de Direito.


  1. Para quem pôde lidar de perto com
    Freitas do Amaral, Æcará sempre a
    racionalidade, a moderação, o ânimo, a
    Çeuma, a capacidade de organização, a
    disposição de ouvir, a inigualável propensão
    para resolução de problemas. Para um
    homem daquela compleição teórica era
    impressionante o seu “espírito prático”. Sim,
    era espírito prático e não pragmatismo — o
    hoje tão incensado, comum e conveniente
    pragmatismo. A sua capacidade de
    organização e de direcção de uma reunião ou
    de corpos colegiais era absolutamente
    exemplar. Sob a sua batuta, havia tempo de
    falar, de escutar todos, de sumariar e de
    decidir. Começava-se a horas e saía-se à hora.
    A sua capacidade de síntese, muito aliada ao
    dito espírito prático, era lendária.

  2. E depois havia nas entrelinhas de cada
    frase e de cada gesto, os seus dois amores:
    Portugal e a família. Estavam lá, estavam lá
    sempre, discretos, mas omnipresentes.
    Davam-lhe o sentido. O sentido de um
    português que soube ser cidadão do
    mundo.


DANIEL ROCHA

Paulo Rangel
Palavra e Poder

Recep Erdogan e Turquia.
A ofensiva turca na fronteira
norte da Síria é inaceitável
a todos os títulos. O desastre
humanitário está em curso
e o risco de genocídio
espreita

Donald Trump. A retirada
das forças americanas
do território sírio tem
consequências altamente
nefastas (como já tivera
a saída do Iraque).
O terrorismo do Daesh
pode voltar
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