Público - 15.10.2019

(C. Jardin) #1
Público • Terça-feira, 15 de Outubro de 2019 • 7

O meu choque perante a notícia agora
publicada adveio certamente de, mais uma
vez, se pressentir aqui o odor do compadrio,
das negociatas obscuras e das portas
giratórias que provém dos lados do
Ministério do Ambiente desde que o
ex-primeiro-ministro José Sócrates lá deixou
o ar da sua graça. Mais ainda, porém, o meu
choque adveio de, mais uma vez, ver os
parcos recursos do meu país irem parar às
mãos de alguns, muito localizados e muito
bem relacionados, interesses privados.
Neste caso, perante uma crise ambiental
cujos contornos avassaladores poucos
parecem ainda perceber, falamos de recursos
fundamentais para uma economia circular
que, gradualmente, virá substituir a nossa
economia corrente de extração, rendas
descaradas e consumo conspícuo. Sim: o lixo
destinado à reciclagem, tal como os resíduos
orgânicos destinados à compostagem, a água
dessalinizada ou a produção de energia a
partir de fontes renováveis serão as
verdadeiras commodities do futuro.
Como é então
possível imaginar
que, num pequeno
país europeu, esses
recursos essenciais
Æcarão nas mãos de
apenas uma
empresa?
Já se perceberam
as movimentações
parlamentares para
limitar a
possibilidade de o
cidadão comum
poder participar na
cogeração de
energia solar e,
nomeadamente,
poder vir a vender
energia à rede —
outro dos escândalos
que vai emergindo
por entre as malhas
da ignorância que a
população portuguesa vota aos assuntos de
ordem ambiental. Agora, o escândalo da
Mota-Engil e dos resíduos orgânicos, não
passa tanto por contornar as leis da
concorrência, ou de ir contra novas formas
de economia partilhada e descentralizada.
Esse não é o assunto que aqui está em
questão. O que aqui está em questão é uma
tentativa de assalto organizado e
premeditado aos recursos do país por um
pequeno grupo de malfeitores
bem-informados e bem-engravatados. E,
nesses momentos, é imperativo juntarmos o
poder da nossa voz às denúncias da
imprensa livre.

Arquitecto

Pedro Gadanho


Assalto premeditado aos


nossos futuros recursos


F


oi com choque que li a notícia do
Expresso de que o agora reconduzido
Governo do PS quer entregar, “em
exclusivo” e sem concurso público, o
negócio de recolha de resíduos
orgânicos urbanos a uma empresa
do grupo Mota-Engil. Parece um
assunto menor e remoto, mas não é.
Explico porquê.
Bastaram-me umas semanas na
Universidade de Harvard a ouvir cientistas
falar sobre alterações climáticas para
conÆrmar que os maiores desaÆos que
Portugal enfrenta no futuro próximo são
muito especíÆcos: não tanto a subida do nível
dos mares, os fenómenos climatéricos
extremos ou o aumento das temperaturas
— de que tanto se fala —, mas antes as agruras,
já sentidas com veemência, da desertiÆcação e
das secas prolongadas. A solução para esses
problemas não passa por bombeiros a
distribuir água por populações remotas nem,
como poderia aventurar Donald Trump, por
ter mais garrafas de água disponíveis nos
supermercados. Mas passará, em parte, pela
distribuição em massa de composto orgânico
proveniente dos resíduos das nossas cidades.
Cada município urbano pode sustentar a área
rural envolvente, contribuindo para a inversão
da atual aceleração da erosão dos solos.
Como em muitos outros aspetos da crise
ambiental que aí vem, isto constitui um
desaÆo para alguns interesses instalados, mas
também uma oportunidade para novas
formas de negócio, que poderão criar uma
sociedade mais equilibrada, mais equitativa,
menos poluída e menos dependente de
processos industriais nocivos.
Assim, devíamos estar já a instituir redes de
compostagem municipais com caráter
industrial, de modo a providenciar respostas
essenciais para um futuro mais sustentável,
mas, também, a estimular a participação das
populações num esforço verdadeiramente
meritório para responder a efeitos
perniciosos da crise ambiental.
Porém, será apenas a reboque de
normativas europeias que em 2023 nos
veremos “obrigados” a iniciar o processo de
recolha seletiva dos resíduos urbanos que
permitem a compostagem orgânica. E,
entretanto, aqueles que estão habituados a
viver para a lógica do lucro à base da
conivência com governos pouco
transparentes já estão a aÆar as suas garras.

O meu choque
adveio de, mais
uma vez, se
pressentir aqui
o odor do
compadrio, das
negociatas
obscuras

Como é possível imaginar


que há recursos essenciais
que ficarão nas mãos de

apenas uma empresa?


providenciar ao desenvolvimento agrário, ao
uso sustentado e sustentável dos solos, na
aposta em sistemas agroÇorestais. Pior, no
ensino superior assiste-se à redução do
número de candidatos ano após ano. Sem
exército não se vencem guerras. E sim,
estamos em guerra. Pela defesa de um
território que permita a presença humana em
condições de vida condigna, proporcionada
por um território com risco aceitável.
Mas, para alem do problema ao nível dos
recursos, o país não tem estratégia, vai
avançando em função de vaidades pessoais,
de “reforma” em “reforma”. Da produção de
diplomas legislativos que, como resultado,
apresentam uma tendência crescente para a
destruição. Não tem estratégia porque não
tem uma visão. Na actividade Çorestal, vai-se
especializando em culturas de risco, de lucro
fácil, mas associado a produções de ciclo
curto em termos de sequestro de carbono.
Nas últimas décadas
aumentou a taxa de
produção de madeira
triturada, regra geral
vinculada a produtos
de ciclo curto de
sequestro de
carbono, em
detrimento da
produção de bens à
base da cortiça, por
exemplo. Dos
produtores de bens
de ciclo curto de
sequestro de
carbono vêm as
mensagens de que é
preciso apostar nas
Çorestas. Sim, com
certeza. Mas não em
plantações para
associar a esse tipo
de produções.
A articulação de
políticas entre o
poder central e o
autárquico tem sido
uma desilusão. E é fundamental o papel das
autarquias para um rumo alternativo. Esse
papel fundamental está no fortalecimento
dos mercados locais, na maximização das
mais-valias das produções locais, ou seja, no
combate ao extractivismo, no acréscimo do
rendimento dos munícipes.
Apesar do potencial do território nacional
para uma grande diversidade de opções em
termos de ocupação e uso dos solos, o facto é
que o país vai caminhando de monocultura
em monocultura, dos cereais ao pinheiro
bravo, para o eucalipto, até ao olival e
amendoal intensivos. De facto, a dúvida sobre
se queremos mudar de rumo é justiÆcável.

Engenheiro silvicultor

Paulo Pimenta de Castro


15/10/2017: estamos


à espera do próximo


D


ois anos após os incêndios de
Outubro de 2017, o país aguarda
fenómeno similar. Ou pior! Pode
não ser num dia 15, nem em
Outubro. Pode ser na presente
legislatura, ou logo na seguinte.
Pode ou não estar associado a um
furacão ou a fenómeno
meteorológico similar. Mas estará,
seguramente, associado ao
despovoamento e às opções de ocupação e
uso dos solos.
No plano social e Ænanceiro são conhecidas
as muitas críticas, a elevada ineÆciência das
autoridades, os demasiados casos em
investigação criminal relativos aos
acontecimentos pós-incêndios de 2017.
Lamentámos as vítimas mortais, condenámos
os feridos a uma existência difícil,
recuperámos o ediÆcado e infra-estruturas,
com tudo o que de estranho envolveu.
Retomámos a vida do dia-a-dia. Todavia, o
território persiste em proporcionar um
elevado risco, pior do que o estimado em 2017,
antes dos incêndios. Ao que ardeu e persiste
no território, junta-se o que germinou e está
sem gestão, acumulando nalgumas regiões
cargas de combustível não antes vistas.
Ainda não deu para entender se a opção
política é a de manter o rumo do
despovoamento, da desÇorestação, do
avanço da desertiÆcação, dos mirabolantes
investimentos em regadio (leia-se, em
betão), em extensas áreas de monoculturas,
que mais tarde ou mais cedo são dizimadas
pela seca, por incêndios, por pragas ou por
doenças. Se for este o rumo, o sucesso
parece mais do que garantido. A favor deste
rumo estão as alterações climáticas, com
destaque especial para as regiões de clima
mediterrânico. Todavia, se o rumo
pretendido é o inverso, não se vislumbram
medidas coerentes, integradas, com apoio
público suÆciente para que ele se possa
concretizar. Por apoio público entenda-se
em recursos humanos, materiais e
Ænanceiros. O constante anúncio destes
últimos tem-se revestido, numa parte, em
mera ilusão, numa outra, em verter dinheiro
sobre os problemas. Quanto aos outros
recursos, o deÆnhamento tem sido a regra.
Os serviços públicos são hoje uma miniatura
do passado, um faz que existe.
Quanto a recursos humanos, hoje em dia
são poucas as escolas proÆssionais a formar
técnicos agrícolas e nenhuma, reforço
nenhuma, está neste momento a formar
técnicos Çorestais. Estes técnicos, com o 12.º
ano de escolaridade e formação proÆssional,
poderiam ser uma primeira linha de um
“exército” de combate ao abandono do
território, pelo apoio que podem

Retomámos a
vida. Todavia, o
território
persiste em
proporcionar
um elevado
risco, pior do
que o estimado
em 2017, antes
dos incêndios

ESPAÇO PÚBLICO

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