Público - 05.10.2019

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16 • Público • Sábado, 5 de Outubro de 2019


SOCIEDADE


Um colégio de cardeais cada vez
menos europeu e italiano, cada vez
mais do Sul do mundo e onde cresce
o número de membros preocupados
com questões que saem das frontei-
ras da Igreja. Cardeais que se empe-
nham em questões como o diálogo
com o islão, os migrantes e refugia-
dos, os pobres e as pessoas margi-
nalizadas ou a dimensão de escuta
e de diálogo cultural com artistas e
pensadores – incluindo o português
José Tolentino Mendonça, que hoje
será formalmente investido pelo
Papa, com outros 12 bispos, na fun-
ção de cardeal, que corresponde à
de conselheiro do líder da Igreja
Católica.
“A cultura é um palco particular
para essa dimensão do encontro, da
hospitalidade do outro, da escuta”,
disse ontem à tarde o arcebispo José
Tolentino Mendonça, 53 anos, a um
grupo de jornalistas portugueses.
“Uma coisa que a cultura me ensinou
é que a coisa mais importante que
podemos fazer é escutar e é na escu-
ta profunda uns dos outros que nos
podemos verdadeiramente encon-
trar”, declarou, a propósito da sua
capacidade de fazer pontes com
outros sectores.
Garantindo que continua a escre-
ver poesia – João Paulo II era Papa e
escreveu poemas, lembrou –, o autor
do livro A Noite Abre Meus Olhos dis-
se que a poesia “é também uma cha-
ve importante para escutar Deus”. E
acrescentou: “O maior dom que a
poesia me deu é a necessidade pro-
funda da escuta.”
Questionado sobre se ser cardeal
o incomoda, Tolentino Mendonça
respondeu: “Ser cristão é um risco,
ser humano é um grande risco.” E
referindo outro grande poeta, acres-
centou: “Guimarães Rosa, esse autor
amado da nossa língua, dizia ‘viver
é perigoso’. E nós sabemos que é
assim. As coisas grandes da vida são
assim e todos nós vivemos, nos nos-
sos caminhos diferentes, coisas mui-


to perigosas: um grande amor, um
Ælho, um encontro, um trabalho que
nos apaixona.”

A diversidade é “genética”
Sobre o momento actual da Igreja,
com as críticas de diferentes sectores
ao caminho de reforma trilhado pelo
Papa, Tolentino Mendonça considera
que a diversidade dentro da Igreja é
uma marca “genética”: “Não é um
problema, a diversidade é uma rique-
za. Se olharmos para a história do
cristianismo, ela é feita de santos tão
diferentes, de congregações religio-
sas, de carismas...”
As diferentes sensibilidades nunca
foram de deitar fora, acrescentou.
Pelo contrário, são um “enriqueci-
mento muito importante” e a Igreja
é uma experiência que se encontra
“não na fusão, mas numa diferença
convergente”, sendo o papel do Papa
o de “agregador”. Referindo-se ainda
às palavras do Papa no regresso da
sua recente viagem a África (incluin-
do Moçambique), quando disse não
ter medo de um cisma, o bibliotecário
da Santa Sé aÆrmou: “O que o Papa
disse na viagem foi ‘não tenho medo’.
A mensagem não é ‘vem aí um cisma’.
A mensagem é ‘eu não tenho medo’.”
Socorrendo-se da sua investigação na
área dos estudos bíblicos, acrescen-
tou que a diversidade está presente

“desde os primeiros textos das ori-
gens cristãs, é alguma coisa muito
permanente”, exempliÆcando com o
facto de haver quatro relatos diferen-
tes acerca da vida de Jesus, referindo-
se aos quatro evangelhos canóni-
cos.
O Papa Francisco tem uma voz que
chega longe, disse Tolentino Mendon-
ça. Ele “tem uma autoridade muito
para lá das fronteiras do mundo cató-
lico, muito na linha de uma curiosida-
de com os outros, de encontrar-se
com o coração desarmado e de escu-
tar até ao Æm a pessoa”.
Por isso, colocado perante a possi-
bilidade de um dia ser ele próprio a
vestir de branco, disse que entrar
num conclave “é tão perigoso como
sair dele”. “O importante é convergir,
para o espírito de comunhão da Igre-
ja, interpretar os sinais dos tempos e
[deixar] que o Espírito Santo fale. Mas
não falemos de conclave. Vida longa
ao Papa Francisco”, disse, para insis-
tir: “Vida longa ao Papa Francisco e a
todos os papas que virão.”
Nascido no Machico (Madeira), José
Tolentino Mendonça foi para o semi-
nário aos 11 anos. Depois de ordenado
padre doutorou-se em estudos bíbli-
cos, área em que já publicou vários
ensaios — nomeadamente A Constru-
ção de Jesus e Leitura InÆnita. Ao mes-
mo tempo, é reconhecido como uma
das vozes mais originais da poesia
portuguesa contemporânea e vários
dos seus livros de poemas foram pre-
miados.

José Tolentino Mendonça vai
ser hoje formalmente investido
como cardeal

“Ser cristão é um risco, ser


humano é um grande risco”


Acolhimento de refugiados, diálogo com o islão e a diversidade


cultural são as marcas do Papa no consistório de hoje no


Vaticano. Tolentino Mendonça está pronto para ser cardeal


Religião


António Marujo,


no Vaticano


U


ma azinheira plantada em
terra de vários lugares do
mundo, nos jardins do
Vaticano, numa cerimónia
presidida pelo Papa Francisco e
com a presença de uma
delegação de indígenas da
Amazónia, que rezou e cantou
nas suas línguas, assinalou
simbolicamente o início do
Sínodo dos Bispos, que neste
domingo começa em Roma.
Ao mesmo tempo,
homenageou as pessoas
mortas em defesa da floresta
amazónica. Oriunda de Assis, a
cidade de São Francisco –
patrono dos ecologistas e

inspirador quer do nome do
Papa, quer da encíclica
Laudato Si’ — dedicada ao
ambiente —, a azinheira
assinalou a importância que o
Papa atribui à realização do
Sínodo e à situação social,
económica e ecológica da
região amazónica.
Francisco quis registar ainda
o dia consagrado pela Igreja
Católica a Francisco de Assis e
encerrar o “Tempo da Criação”,
iniciativa conjunta de várias
igrejas cristãs durante as
últimas semanas, destinada a
sensibilizar para as questões
ambientais e da “casa comum”.

Uma azinheira de Assis pela Amazónia


ENRIC VIVES-RUBIO
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