Público • Sábado, 5 de Outubro de 2019 • 31
Jornalista. Escreve ao sábado
[email protected]
- O nacionalismo de Xi Jinping
recorre sistematicamente ao
contraste entre a histórica
“humilhação” da China e a sua
grandeza, actual e futura. O país
transformou-se na segunda
economia mundial e ganhou o
estatuto de potência emergente.
Ao mesmo tempo, o velho
nacionalismo ocidentalista deu
lugar a uma postura de desaÆo às
ideias e instituições ocidentais.
Comecemos pela actualidade da
semana. No dia 1 de Outubro, Xi
Jinping presidiu em Pequim às
comemorações do 70.º aniversário
da República Popular da China.
Uma maciça parada militar expôs o
seu novo poderio. Num tom
marcadamente nacionalista, o
conciso discurso de Xi apontou o
lema que deÆne o seu mandato: “A
luta pelo renascimento do grande
sonho chinês”. O sucesso deste
slogan faz evocar o Make America
Great Again, de Donald Trump. A
chave do discurso de Xi resume-se
em poucas palavras: “Nenhuma
força será capaz de abalar esta
grande nação”.
A comemoração foi “estragada”
pelas imagens de Hong Kong nesse
mesmo dia, disseram
observadores. Mas Xi falava para os
chineses e não para o estrangeiro.
Exibia perante os concidadãos a
“nova grandeza da China”.
O Æo condutor da história
contemporânea chinesa não é de
natureza social mas nacional (ver
P2 de 29 de Setembro). A revolução
chinesa foi primordialmente
nacionalista. Não assentou na luta
de classes, mas na resposta a um
traumatismo histórico: a
“humilhação nacional”, primeiro
pelos “bárbaros ocidentais” com as
“guerras do ópio” e, depois, pelo
jovem e agressivo imperialismo
japonês.
Os primeiros revolucionários
tornaram-se ardentes
ocidentalistas. Para suster o seu
declínio, a China deveria adoptar
técnicas ocidentais e instituições
de inspiração ocidental. Não
tinham outra via para a
“modernização”, que neste caso
signiÆcava a sobrevivência
nacional.
- Em contraste com o início do
século XX, o actual nacionalismo
chinês ambiciona, inclusive,
constituir um modelo alternativo
às democracias liberais. A China
tornou-se mais rica e mais forte. No
entanto, a ideia de renascimento
da grandeza da China permanece,
e cada vez mais intensamente, no
centro da ideologia do Partido
Comunista Chinês (PCC), e de
forma muito mais patente desde a
ascensão de Xi ao poder supremo.
Ele procedeu a uma manifesta
inÇexão nacionalista.
“Qualquer líder que deseje
alcançar ou manter a legitimidade
na China moderna deve corrigir o
‘século de humilhação’ e devolver à
China o seu justo lugar no mundo,
enquanto nação poderosa”,
escreveu o sino-americano Xyaoyu
Pu (The Chinese Journal of
International Politics, 2017).
“Assim, o slogan do ‘Sonho Chinês’
tem uma importante função
política enquanto mobilizador do
apoio doméstico.” - O nacionalismo do século XXI
tem hoje dimensões muito mais
largas do que o de um século antes.
Ponto de Vista
Jorge Almeida Fernandes
A China é hoje uma potência,
embora seja ainda pobre.
Do ponto de vista das relações
internacionais, isto levanta outro
problema num horizonte de
poucos anos: que signiÆca a noção
de “revitalização da China”?
Interroga-se Xyaoyu: “Irá uma
China em ascensão desaÆar ou até
substituir os Estados Unidos como
nova superpotência? (...) O
posicionamento internacional da
China também moldará a resposta
das potências estabelecidas à
ascensão da China. Por exemplo, se
a China procurar crescer dentro da
ordem liberal existente, a relação
sino-americana pode não ser um
jogo de soma-zero e os Estados
Unidos podem perfeitamente
acomodar-se à ascensão chinesa.
No entanto, se a China procurar
substituir os Estados Unidos como
nova superpotência, poderá ser
inevitável um conÇito
sino-americano.” Não temos hoje
uma resposta para esta crucial
interrogação. É, de resto, um tema
de discussão entre as elites
chinesas.
- A demarche de Xi Jinping
consiste em articular os dois
momentos do nacionalismo: o
tema da “humilhação nacional” e a
ascensão da China ao estatuto de
potência emergente. Combina as
O nacionalismo de Xi Jinping
ROMAN PILIPEY/EPA
Xi quer manter a
abertura da China
ao mundo evitando
o contágio
de ideias liberais
e democráticas
queixas históricas com as novas
ambições nacionais, o caldo de
cultura do novo nacionalismo.
Trata-se, ao mesmo tempo, de
impor uma narrativa oÆcial da
História e de combinar os valores
da China imperial com os do
regime comunista. “O futuro está
no passado”, resumiu um
jornalista.
“A China conta a sua própria
História à sua população, cria uma
narrativa para lhe pedir esforços
suplementares e fazê-la aceitar o
inaceitável”, explica a sinóloga
Camille Brugier. “Estabelecer
como prioridade o objectivo de
engrandecer o país é também uma
forma de justiÆcar o facto de não
conceder direitos cívicos e
políticos à população”.
A arte de governar a China
pós-maoista é conhecida: o partido
garante a ordem e a segurança e
explica que uma democratização
de tipo ocidental não só ameaçaria
a estabilidade, como ameaçaria a
prosperidade dos cidadãos.
“Instrumentalizando o
nacionalismo de que pretende ter o
monopólio, cria a percepção de
que o partido é o principal artesão
da ascensão do país, da
modernização das suas forças
armadas e do aumento sem
precedentes da sua inÇuência
internacional e do respeito de que
hoje goza nos quatro cantos do
planeta”, sublinha o sinólogo
Jean-Pierre Cabestan.
O certo é que a maioria da
população partilha desta
argumentação. A crise económica
de 2008, a euforia pela
ultrapassagem económica do
Japão, em 2010, e a aparente
erosão que afecta as democracias
ocidentais fornecem argumentos
às teses de Xi sobre a eÆcácia do
modelo político chinês. Na opinião
dos correspondentes estrangeiros,
as elites intelectuais são favoráveis
à manutenção do Estado forte e
centralizado.
- “Xi está a usar o nacionalismo
e o apelo à unidade para enviar a
mensagem de que dará uma
resposta dura aos inimigos, tanto
aos de dentro como aos de fora da
China”, observa o sinólogo
britânico Steve Tsang. Ao contrário
de Mao, que exaltava o caos e
lançou os seus “guardas
vermelhos” ao assalto do partido,
“Xi é um homem da ordem”. Difere
também de Deng Xiaoping, que era
“um pragmático”. Xi é tudo menos
um liberal ou um pragmático. É um
ideólogo que pensa que “o partido
deve controlar o país de forma
infalível”. Quer manter a abertura
da China ao mundo, mas “evitando
qualquer contágio das ideias
liberais e democráticas”.
“Os líderes chineses são
especialmente sensíveis à
desordem doméstica causada por
ameaças estrangeiras”, adverte
Wang Jisi, decano da Escola de
Estudos Internacionais, da
Universidade de Pequim.
MUNDO