Público - 05.10.2019

(nextflipdebug5) #1

34 • Público • Sábado, 5 de Outubro de 2019


CULTURA


Nick Cave está profundamente


vivo no seu novo álbum


O som é planante, cósmico, ambien-
tal. Convite para Çutuarmos por
entre sintetizadores, ruídos digitais,
notas de piano, coros e aquela voz
mais rica do que nunca, meditando
com uma honestidade tocante sobre
a vida a acontecer depois da morte.
Pode dizer-se que Nick Cave e os Bad
Seeds nunca haviam gravado um
álbum assim, tão terrivelmente mara-
vilhoso. Mas talvez seja mais exacto
aÆrmar que o novo Ghosteen intensi-
Æca pistas já exploradas em Push The
Sky Away (2013) e Skeleton Tree
(2016), que agora são esticadas para
uma sonoridade espaçosa, solene e
litúrgica.
Por diversas vezes Cave afirmou
que iniciava nesse álbum de 2013
uma trilogia. Como é evidente não
sabia que, em 2015, haveria uma cir-
cunstância transformadora na sua
vida — a morte acidental do filho
Arthur, de 15 anos. O magnífico
álbum que foi lançado um ano depois
havia sido registado parcialmente
antes dessa ocorrência, embora seja
contaminado por ela. Ainda assim é
justo dizer-se que o presente duplo
álbum é o primeiro registo que foi
totalmente gravado depois dessa per-
da traumática sendo claramente uma
obra atravessada por ela.
A comunicação do seu lançamento
foi feita há uma semana através do
blogue RedHandFiles, onde tem
comunicado directamente com o
público, o que não surpreende. Nos
últimos tempos tem sido essa a via
que escolheu, como se tem constata-
do na presente digressão solitária,
onde dialoga sem mediadores com a
assistência e toca ao piano algumas
das canções mais icónicas. Quem tem
acompanhado os seus últimos anos
não se surpreenderá em nada com o
conteúdo do presente álbum. Já
alguns admiradores de outras épocas
mais desatentos poderão Æcar atóni-
tos.
Não é apenas a música, que está
muitas vezes mais próxima de algu-


O som é planante e ambiental e as palavras habitadas por morte, mas transpirando vida por todos


os poros. Está aí o novo álbum de Nick Cave


dele próprio. “Sim, estou diferente.
Estou mais em conexão comigo e
com os outros”, diria então, enquan-
to ia respondendo às mais diversas
perguntas — das mais triviais às meta-
físicas — com generosidade.
Generosidade, é uma boa palavra.
A alguns poderá parecer que o seu
gesto público tem algo de catártico.
Até certo ponto será verdade. Mas o
que existe acima de tudo é um mis-
to de verdade e tranquilidade na
forma como tem passado para o
lado de cá a sua experiência. E isso
pressente-se na música. Logo ao
primeiro tema, Spinning song, des-
linda que “peace will come, a time
will come for us”, consciência de que
não é um acontecimento, mas um
processo, um caminho árduo, mas
com luz, aquele que está a vivenciar.
Em Sun forest temos o Cave apoca-
líptico de sempre, com alegorias
que remetem para “screaming hor-
ses”, “burning trees” ou “Jesus mad

DR

Ghosteen : Nick Cave mais desperto do que nunca, numa travessia de perdas e de descobertas

with grief”, para no desenlace reve-
lar que “the past pulls away and the
future begins and I say goodbye to all
that”, enquanto as notas de piano e
a envolvência orquestral impõem
um clima ritualista.
A canção Bright horses começa
num tom encantatório, com os coros
vocais e o piano, diluindo-se por
entre o lamento vocal, numa balada
dramática que culmina com ele a
proclamar “Oh the train is coming,
and I’m standing here to see / And it’s
bringing my baby right back to me /
Well there are some things that are
hard to explain / But me baby’s coming
home now, on the 5.30 train.” Essa
tensão enternecedora volta a sentir-
se em Waiting for you com ele a pro-
clamar numa voz um pouco sofrida,
“Waiting for you to return”. A maior
parte dos temas, mais do que canta-
dos, são recitados, fazendo pensar
numa velha inÇuência — Leonard
Cohen — presente, por exemplo, na
excelente balada Night raid, apenas
o espaço, o tempo entre sílabas, um
ligeiro coro vocal, e a voz profunda
de Cave soletrando “We would never
admit defeat”.
Se na primeira parte do álbum o
pressentimos ainda a evocar directa-
mente o fantasma do Ælho — em
Ghosteen speaks chega a proclamar
“Look for me, look for me / I am beside
you, you are beside me” — na segunda
parece estar mais consigo próprio,
num processo de aceitação ou recon-
ciliação, chegando a cantar, por
entre o envolvimento orquestral, no
tema-título, “This world is beautiful /
Held within its stars”, enquanto na
extensa canção Ænal, Hollywood, pro-
clama misteriosamente “And I know
my time will come one day soon / I’m
waiting for peace to come”, para con-
cluir “It’s a long way to Ænd a peace of
mind”.
É evidentemente uma obra habi-
tada por morte, mas com vida a pul-
sar por todos os poros, como se Cave
estivesse mais desperto do que nun-
ca, numa travessia de perdas, mas
também de descobertas. São canções
tão palpáveis e físicas estas, quase
como se pudéssemos tocar-lhes,
como evanescentes e secretas. Nick
Cave nunca esteve tão profundamen-
te vivo. Vítor Belanciano

Crítica de música


Ghosteen


mas bandas sonoras para Ælmes que
tem composto na companhia de War-
ren Ellis, do que dos seus registos
mais viscerais, é também a forma
como o todo — atmosferas e poesia
— acabam por ser expressas. Numa
frase: confrontarmo-nos com o Cave
actual é confrontarmo-nos com os
nossos lutos, perdas e fragilidades. E
nem toda a gente está para isso.
Dito assim, pode parecer que Cave
perde todo o mistério. Longe disso.
Cada camada que vai revelando faz
surgir outra inesperada. A começar
por aquilo que os nossos olhos vêem
(uma imprevisível capa em forma de
conto de fadas) e por aquilo que foi
comunicado em termos de estrutura,
com o álbum dividido em dois — as
primeiras oito canções são as “crian-
ças” e as três restantes são os seus
“pais”, enquanto Ghosteen (qualquer
coisa como o adolescente fantasma)
é um espírito migratório.
Para nós são considerações, parti-

lha de emoções, espaço para pensa-
mentos pairarem em forma de reco-
lhimento, quase como se fossem
orações. São canções sobre fé — não
sobre Deus, mas sobre “a procura de
signiÆcado. O que me interessa é o
conceito de acreditar”, diria em
Amesterdão, em Maio, quando ali o
vimos — movidas por empatia. Musi-
calmente não há ritmos ou guitarras,
apenas névoas e ambiências, num
sintoma de que foi um disco — como
havia acontecido com o anterior —
feito em estreita sintonia com Warren
Ellis, o homem que ouve Cave, e faz
sobressair a sua voz que, aos 62 anos,
parece mais fecunda que nunca.

Verdade e generosidade
Ninguém sai do luto como entrou e
nele isso é por demais evidente. Em
Amesterdão diria que com a morte
do Ælho se havia sentido “desintegra-
do”, mas que ao mesmo tempo se
“foram revelando novos núcleos”

mmmmm

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