Público - 05.10.2019

(nextflipdebug5) #1

6 | FUGAS | Sábado, 5 de Outubro de 2019


Geórgia e Arménia


a Quando Deus fez o mundo, per-
guntou a todos os povos do planeta
em que zona queriam viver mas os
georgianos, demasiado ocupados a
comer e a beber, não lhe responde-
ram. Furioso, o Todo-Poderoso esta-
va prestes a enviá-los para as trevas.
No entanto, o tamada – mestre tradi-
cional responsável pelos brindes em
todas as celebrações georgianas – dis-
se-lhe que tinham estado a louvar o
seu trabalho e que, de qualquer
maneira, não se importavam de Æcar
sem abrigo se essa fosse a vontade
divina. Sensibilizado pela resposta,
Deus entregou-lhes o pedaço de terra
que estava a guardar para si próprio



  • o Cáucaso.
    Esta é uma das histórias que os
    georgianos usam para explicar a sor-
    te que sentem por povoar a região
    fértil da cordilheira caucasiana, enta-
    lada entre o mar Negro e o Cáspio e
    grandes potências mundiais como a
    Rússia, o Irão e a Turquia. Quem ali
    mora, conhece a importância dos
    seus antepassados; o Cáucaso foi a
    primeira morada dos hominídeos
    quando decidiram abandonar África,
    ali criaram-se algumas das primeiras
    formas conhecidas de canto e de dan-
    ça, um alfabeto próprio, exércitos
    que resistiram a milhares de invasões
    de árabes, mongóis e japoneses, um
    reino pejado de ouro, nações pionei-
    ras na conversão ao cristianismo. Há
    mesmo teorias que estabelecem for-
    tes ligações dos caucasianos a Portu-
    gal e a Espanha. Os iberos – originá-
    rios do Cáucaso – chegaram à penín-
    sula mais ocidental da Europa bem
    antes dos romanos e deixaram vestí-
    gios que perduraram até hoje; fabrico
    do vinho, os criadores da chanfana,
    quem, através dos seus cantos polifó-
    nicos, abriu caminho para o cante
    alentejano, para as samarras, e até
    para a origem da misteriosa língua
    basca. Os georgianos, bem como os
    seus vizinhos arménios, têm razões
    para se orgulharem do passado.
    No entanto, o mundo ignora os seus
    feitos. Quando eu e a minha namora-
    da, Ilka, partilhámos com os nossos
    familiares e amigos o destino das nos-
    sas férias, fomos assaltados por uma
    questão insistente: “Geórgia e Armé-
    nia? O que é que isso tem para ver?”.


Em cima, vista
de Tbilissi
do interior
do teleférico
para a Mãe
da Geórgia;
ao lado,
a torre icónica
e extravagante
de Anaklia

Na página
ao lado,
Lia no Museu
Estaline,
em Gori

Não tínhamos muito para argumentar:
mostrámos umas fotograÆas de mon-
tanhas e de khachapuris – um género
de pizza georgiana recheada de queijo
e montada por um ovo estrelado – mas
nem a nós nos conseguíamos conven-
cer. Por que razão não íamos para uma
praia com palmeiras e preferíamos
enÆar a nossa Ælha de dois anos, Lia,
num sítio que toda a gente acreditava
ser habitado por cabras e descenden-
tes de Estaline?
Só a viagem responde ao inexplicá-
vel e esmaga o preconceito. A escolha
não poderia ter-se revelado mais acer-
tada mas apresentava uma séria diÆ#
culdade: o relevo. Tanto a Geórgia
como a Arménia são dos países mais
íngremes à face da Terra e logo nas
primeiras horas Æzeram-nos sentir
que praticar jogging na Bica, em Lis-
boa, era um passeio na planície. Sem
carro próprio, esperava-nos um mês
a empurrar e a carregar a Lia e uns
40kg de bagagens por encostas com
3000 ou 4000 metros de altitude (o
pico mais alto da Geórgia tem 5163
metros). As hérnias eram um risco
aceite quando aterrámos em Tbilissi.
E, no meio do desespero, a notícia
das malas transviadas à chegada foi
recebida com uma certa dose de alí-
vio. Teríamos de transportar apenas
a criança até à devolução dos nossos
pertences.

Tbilissi, 770 m
Os hipsters vêm aí

As casas da parte velha de Tbilissi
desaÆam as leis da engenharia. Estão
podres e desconjugadas, mas teimam
em permanecer erectas com as suas

varandas esplêndidas e coloridas, de
madeira delicadamente esculpida e
com Æligranas. Há zonas de ruína tal
que estes balcões suspensos parecem
Çores germinadas em terra queima-
da, numa cidade com mais de 1500
anos. Fica num desÆladeiro dramáti-

co por onde passa o rio Kura com as
suas águas argilosas e, em ambas as
margens, as escarpas são altas e impo-
nentes, com casas centenárias incrus-
tadas. Vê-se que foi muito disputada
pela aglomeração de fortiÆcações e
de castelos; por esta garganta fez-se
uma das passagens mais importantes
entre o Norte e o Sul, com persas, ira-
quianos, russos e turcos a disputarem
batalhas sangrentas.
Altiva no topo da colina de Sololaki,
uma enorme estátua de alumínio
pareceu-nos um ponto de partida
perfeito. A Mãe da Geórgia, criada em
1958, simboliza o espírito de um povo
hospitaleiro e bélico – na mão direita,
um copo de vinho para receber os
amigos, na esquerda, uma espada
para combater os inimigos. É acessí-
vel através de um teleférico, de onde
é possível vislumbrar o coração da
urbe. Nas traseiras do monumento
estão os Jardins Botânicos de Tbilissi,
anÆtriões de uma magníÆca cascata
com uns 20 metros de altura, onde a
Lia quis tomar o seu primeiro
banho.
Vista do topo, junto às ruínas da
Fortaleza de Narikala, Tbilissi, cheia
de árvores, tem o verde como cor
dominante. Sentámo-nos na esplana-
da de um restaurante na zona velha e
pedimos as duas coqueluches da gas-
tronomia nacional – o adjarian kha-
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