Público - 05.10.2019

(nextflipdebug5) #1

8 | FUGAS | Sábado, 5 de Outubro de 2019


Geórgia e Arménia


nome do poeta medieval Shota Rus-
taveli, autor de O Cavaleiro na Pele de
Tigre. É uma epopeia nacional ao esti-
lo de Camões ou de Homero que mui-
tos georgianos, amantes de poesia,
conhecem de memória.
Com o cair do sol, os georgianos
enchem ainda mais a cidade. Os bares
e os restaurantes estão cheios e ante-
cipam festa até aos conÆns da madru-
gada. Aqui ainda não chegou a ASAE:
fuma-se dentro dos bares e discotecas,
não há hora de fecho nem restrições
às garrafas de vidro. Há buracos escu-
ros de boémia e perversão e lugares
que não fecham os olhos. Tbilissi pare-
ce Lisboa antes das trotinetas e do
Airbnb. Mas será por pouco tempo.
Atrai muitos turistas de estilo alterna-
tivo, avessos a destinos convencionais,
que não se apercebem, todavia, que
também eles vão congestionando a
cidade e inÇacionando as rendas. Os
hipsters reúnem-se na Fabrika, um
velho complexo fabril que agora alber-
ga um hostel, lojas de skate e de design
e restaurantes estilosos. As paredes
estão adornadas por arte urbana e
não faltam as mensagens políticas
contra Putin, o inimigo russo. Tbilissi
está cada vez mais europeia; e isso
tem muito de bom, excepto o que era
mau mas sabia bem.


Mestia/Ushguli, 2100m


Os bravos da montanha


Para os georgianos, Mtskheta, a 20km
de Tbilissi e primeira capital do país,
é um lugar sagrado, ou não guardasse
a sua Catedral de Svetitskhoveli a san-
ta túnica de Jesus Cristo. Os Æéis ajoe-
lhavam-se junto dos túmulos e dos
altares e a Lia não parava de me per-
guntar o que estavam a fazer. Talvez
para premiar a sua curiosidade, uma
acólita ofereceu-lhe um ramo de Ço-
res e eu agradeci-lhe muito porque a
criança deixou de fazer questões
incómodas. Foi também ali que avis-
támos o nosso primeiro mosteiro
empoleirado numa montanha – e iam
ser às dezenas nas semanas seguintes.
O Mosteiro de Jvari, do século VI,
debruça-se sobre o vale e os rios que
aninham Mtskheta e é local de eleição
para casamentos. Pisámos vários ves-
tidos de noiva até chegar à muralha,
onde nos regozijámos com uma pai-
sagem digna de quadro clássico.
Mas todo o bucolismo se esfuma na
hora de formar Ælas. Os georgianos,
gente de sangue na guelra, não são
amigos de esperar. À chegada do com-
boio para Gori, cidade natal de Esta-
line, a 80km de Tbilissi, homens e
mulheres começaram a empurrar-se,


Ponte sobre
o rio Kura,
em Tblissi;
na página ao lado,
Lia a chegar
ao conjunto
de megálitos

sia e a Ossétia do Sul, e a tensão está
sempre latente. Os russos são, e sem-
pre foram, obcecados pela Geórgia.
Adoram as suas praias, a comida, o
clima e o vinho. Idolatram as suas
gentes, tidas como os melhores guer-
reiros e os amantes mais escaldantes.
Dá a impressão de que quem se por-
tar bem em Moscovo, ao falecer, irá
para a Geórgia e não para o paraíso.
As pernas começavam a fraquejar
e conseguimos alugar um carro por
20 euros diários, através do canal de
Facebook Georgian Wanderers, mui-
to útil. Mas a vida não tem preço e
conduzir na Geórgia signiÆca arriscá-
la. Os georgianos são impacientes e
tentam ultrapassar nas curvas. E há
ainda os buracos no asfalto, as vacas
nas faixas de rodagem e o excesso de
álcool ao volante.
Mesmo assim, chegámos sãos e sal-
vos à encantadora Mestia. É uma vila
a 1500m de altitude, com menos de
três mil habitantes, centro turístico de
toda a região e o bastião dos svans, um
subgrupo cultural e linguístico dos
georgianos. Nos meses de Inverno,
enfrentam nevões e temperaturas
pouco recomendáveis à presença
humana.
As casas tradicionais dos svans con-
templam uma torre defensiva usada
pelos clãs em tempo de guerra. Há
várias ainda de pé em Mestia. Visitá-
mos uma delas e, para não variar, o
cicerone convidou-nos para beber
chacha a partir de um chifre grosso e
curvilíneo. A Lia também bebeu de
um dos cornos, mas sumo. A cave
estava transformada em museu, com
teares, vasos para o fabrico de vinho
e outras peças antiquíssimas. Eldar,
o dono, garantiu-nos que a casa per-
tencia à sua família há pelo menos
600 anos. Depois, convidou-nos a
trepar a escadaria bamba até ao cimo
da torre – o que menos me apetecia
depois de dois cornos de vodka. Não
cheguei ao telhado mas contemplei a
povoação através de uma pequena
janela; um mimo, com as pitorescas
casas de pedra e os cumes das serras
polvilhados por neve.
Após um passeio a cavalo, decidi
deixar a família em casa e pôr-me no
trilho para o glaciar Chaladi. Foi uma
caminhada memorável, em silêncio,
alternada entre a Çoresta e as margens
de um rio de caudal tumultuoso. Fios
de água escorriam do topo dos
penhascos. Os mantos de neve pare-
ciam então alcançáveis e aventurei-
me a subir uma encosta de pedras
soltas com ténis de passear na cidade,
para tocar naquele milagre imacula-
do. Porém, a ilusão de óptica foi

estava e fomos todos em excursão, Lia
incluída, em seu encalço. O taxista per-
guntava aos transeuntes se tinham
visto o Estaline e eles apontavam para
uma direcção – parecia uma cena de
um Ælme surrealista. Acabámos por
encontrar o monumento virado de
cabeça para baixo num estaleiro do
exército. A Lia foi a correr em sua direc-
ção, a rir-se da situação, e eu Æquei
aliviado por não estarmos nos anos
1930, pois não me apetecia nada ter de
ir resgatar a minha Ælha à Sibéria.
Estaline é apenas uma das peças na
complexa problemática entre a
Geórgia e a Rússia que, em 2008, tra-
varam a primeira guerra europeia do
século XXI. A Rússia mantém anexa-
das duas regiões da Geórgia, a Abecá-

sacos pelos ares, duas pessoas no
chão e meninos a chorar. E o comboio
estava longe de ir cheio.
Gori tem um museu dedicado a
Estaline, ao lado da casa em que o
ditador nasceu e viveu até se mudar
para o seminário de Tbilissi. É o mais
visitado do país. Um acervo bajulador
que percorre as façanhas do “homem
de ferro” desde os seus primeiros
poemas até à modernização da indús-
tria e à vitória militar em Estalinegra-
do. De gulags e da campanha do
Grande Terror, nem pó.
Nem todos gostam, contudo, de
Estaline. Em 2010, o governo local
mandou derrubar a maior estátua do
tirano, que se encontrava diante da
sede autárquica. Descobrimos onde
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