Público - 05.10.2019

(nextflipdebug5) #1
Sábado, 5 de Outubro de 2019 | FUGAS | 9

madrasta. Não estava assim tão próxi-
mo e vi-me na sofrível situação de não
conseguir escalar nem descer. Quan-
do tentava andar, os meus pés resva-
lavam nos seixos e mandava um tram-
bolhão. Demorei tanto tempo que
quando alcancei a base já estava a
escurecer e ainda me faltava uma hora
no mato. No caminho, passei por um
homem que, agachado e imóvel, con-
templava a montanha com um sem-
blante de que, em pouco tempo, iria
entrar em simbiose com a serra e
petriÆcar. De súbito, levantou-se e
desatou a correr de calhau em calhau
com a destreza de um coelho bravo.
Na manhã seguinte, pelas 10h, apa-
nhámos um minibus para a aldeia de
Ushguli, depois de nos informarem
que se tentássemos lá chegar no nos-
so carro Æcaríamos sem eixo. De fac-
to, o solo estava tão esventrado que
nunca o teríamos conseguido. Dentro
da carrinha, éramos como ovos numa
batedeira enquanto, lá fora, milhares
de borboletas brancas esvoaçavam
alegremente.
Ushguli, a 2100m, é a povoação per-
manentemente habitada mais alta do
mundo. No Inverno, os bravos que
aqui permanecem chegam a Æcar
meses isolados, porque a neve torna a
estrada intransitável. É uma aldeia de
conto de fadas, remota, selvagem, a
viver um tempo que não é o nosso, um


tempo com mais tempo. Ali abundam
as torres defensivas e as vacas e os por-
cos igualam as pessoas na via pública.
Da igreja, proeminente no cerro, avis-
ta-se um sendeiro mágico que aponta
a um baluarte nevado, Shkhara, gigan-
te entre os colossos da cordilheira cau-
casiana. Almoçámos salada de tomate
e pepino e o omnipresente khachapu-
ri numa casa de família, cuja mãe vive-
ra na Alemanha e falava a língua: “Esta-
mos em Tbilissi durante o ano e só
vimos aqui de férias”, disse. “É muito
bonito para visitar mas viver aqui no
Inverno é só mesmo para quem não
tem escolha.”

Telavi, 415m
O berço do vinho

Um português pode passar umas
férias de montanha mas não dispen-
sa um mergulho no mar. Arrastei a
família até Anaklia, no regaço do mar
Morto, para me refrescar naquelas
águas – o Verão na Geórgia é sempre
ardente. Anaklia é tranquila, bem
distante do frenesim de Batumi, a
cidade balnear por excelência. E nós
queríamos calmaria, mas não tanta:
não havia electricidade nem vivalma.
Ainda conseguimos jantar num res-
taurante com gerador que nos prepa-
rou uma saborosa carne frita e sala-
das e contámos com a simpatia da

polícia para carregar as baterias dos
telemóveis na esquadra. A Lia adorou
a visita ao posto policial. Na televisão,
passavam imagens de distúrbios em
Tbilissi: os manifestantes protesta-
vam violentamente contra a presen-
ça de deputados russos no parlamen-
to nacional. Havia feridos. Sempre o
atrito entre russos e georgianos.
As notícias dizem que vai nascer
em Anaklia o maior porto da região.
Para já, o único navio à vista é um
naufragado na praia que, combinado
com uma torre escaganifobética,
resulta num cenário para um Ælme
apocalíptico. No entanto, nada a dizer
da água tépida do mar Negro, que até
deu para a pequena ter mais uma aula
de natação.
Antes de entregar o carro, cometi a
proeza de ser multado por transgres-
são de um traço contínuo num país
em que toda a gente viola as linhas da
estrada. Como se não bastasse, abal-
roei uma ave de considerável porte,
que Æcou com a cabeça pendurada na
grelha, disturbando profundamente
os transeuntes. Era preciso beber para
esquecer e o melhor destino para tal
era Kakheti, no Leste do país, a região
vinícola demarcada mais antiga do
globo. Chegámos a Telavi num táxi
partilhado.
As sementes descobertas por
arqueólogos nesta região não deixam
margens para dúvidas: há 8000 anos,
quando o Homem ainda era nómada
e nem trabalhava o cobre, começou-
se a produzir vinho em Kakheti. O
método então usado é ainda hoje
replicado pelos georgianos. Usam o
qvevri, um volumoso vaso de barro
com o formato das ânforas gregas,
para o armazenamento, fermentação
e envelhecimento do vinho. Estes
recipientes cheios de sumo e do cor-
po da uva são colocados em orifícios
no subsolo, onde Æcam a fermentar
de quatro a seis meses. O resultado é
um vinho singular, muito apreciado
nos países do Leste europeu e cada
vez mais disseminado por paragens
mais distantes.

Fomos recebidos por Zurak Rosto-
mantchvili, de 80 anos, na pequena
adega familiar, Rostomant Marani. Ali
faz-se vinho há séculos, porém, em
1921, a União Soviética forçou os vini-
cultores de Kakheti a pararem o fabri-
co artesanal para se concentrarem na
produção massiva, de forma a abaste-
cer o império. Os Rostomantchvili
trancaram a adega e só a reabriram em


  1. Nela, encontram-se ainda um
    lagar para pisar uvas com mais de 200
    anos e os buracos dos qvevris, cente-
    nários. “O mais difícil é limpar os
    vasos, que têm de Æcar perfeitos para
    receber o mosto. Umas seis vezes por
    dia, entramos nos vasos para limpar as
    paredes com pele de ameixa branca”,
    conta Zurak, enquanto dispõe na mesa
    garrafas de vinho e pratinhos com
    queijo tenili, uns farrapos que parecem
    de borracha mas sabem ao céu.
    Irakli, Ælho de Zurak, estudou em
    Viana do Castelo e foi inÇuenciado
    pela cultura vinícola portuguesa. Isso
    ajudou-o a dinamizar o negócio fami-
    liar. Ao ponto de ter criado um licor
    idêntico ao Vinho do Porto, o Rosto,
    que está a ter saída. “Portugal tem
    vinhos muito bons, mas a Geórgia
    também. É difícil dizer qual é
    melhor”, aÆrma. “Um estrangeiro
    que aÆrme que gosta do típico vinho
    branco georgiano, casta Rkatsiteli, da
    primeira vez que o prova, está prova-
    velmente a mentir. Tem um aroma
    tão diferente que é preciso tempo
    para o entranhar.” Isto porque os
    brancos georgianos fermentam com
    a pele e com as grainhas, conferindo-
    lhes uma tonalidade alaranjada e um
    travo seco e frutado.
    Para um país pequeno, a Geórgia é
    prodigiosa na variedade dos solos e
    do clima. A uva dá-se ali como em
    nenhum outro lugar - são 500 varie-
    dades autóctones, aproximadamente
    um sexto do total mundial. O vinho é
    mais do que uma bebida. É identida-
    de, união e hospitalidade. Nas mesas
    georgianas, o lugar do tamada, o mes-
    tre dos brindes, é imensamente res-
    peitado: “Ele invoca um brinde,


Foi uma


caminhada


memorável,


em silêncio,


alternada


entre a floresta


e as margens


de um rio


de caudal


tumultuoso.


Fios de água


escorriam


do topo dos


penhascos


c

Mar
Negro
Tbilissi

5642

Ierevan

TbilissiTTbb ss

IerIerIerIerIerIerIerIerIerIerevaevaevaevaevaevaevaevaevaevaeeeeeeevnnnnnnnnnnnnnnnn

Tbbilissis

Sisian
IRÃO

GEÓRGIA

ARMÉNIA

TURQUIA

RÚSSIA

60km

Ierevan

Mestia

Anaklia

ÃO

A
Z
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Mar
Negro

TURQT Q

3597

SisianSSsian

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AAI
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Nagorno-
-Kharabakh
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