Público - 05.10.2019

(nextflipdebug5) #1

10 | FUGAS | Sábado, 5 de Outubro de 2019


Geórgia e Arménia


faz um discurso, e todos os presentes
devem acompanhá-lo. É ele que gere
os tópicos de conversa e que modera
o debate. Nunca pode beber em
excesso porque depende dele a har-
monia à mesa”, diz Zurak. O primeiro
brinde costuma ser para Deus, depois
para o lar, para os pais, as crianças e
os bebés. Para os que já morreram,
para a pátria e para a paz. E a lista
continua noite fora, potencialmente
inÆnita.
Diante do nosso quarto, no jardim
de uma casa de família, deixaram
sobre uma mesa uma garrafa de plás-
tico cheia de vinho cor-de-âmbar.
Provámos e era amargo e seco, milhas
atrás dos néctares que tínhamos pro-
vado com os Rostomantchvili; fez-me
lembrar quando o meu avô ia às ade-
gas dos amigos mudar o vinho e che-
gava a casa com uns garrafões de uma
pinga intragável, mas que ele adora-
va. Os vinhos artesanais nunca são
maus porque são feitos com muito
amor. Quando a nossa anÆtriã nos
perguntou que tal estava, responde-
mos em uníssono: “Fantástico.”


Sisian, 1600m


Pedras que falam


Depois de um comboio nocturno
para Ierevan e de uma viagem de
carro viemos parar ao acolhedor
domicílio de Julieta e de Surian, em
Sisian, no Sul da Arménia; ele, um
ginecologista nascido e criado no
seio de um dos clãs mais antigos da
localidade, ela, gentileza em pessoa,
arménia do Azerbaijão, refugiada
quando os dois países entraram em
conÇito há 30 anos. A Lia travou logo
amizade com uma das netas do casal,
Julia, e passavam as manhãs a andar
de baloiço no jardim.
Julieta presenteava-nos todos os
pequenos-almoços e jantares com
iguarias da quinta, sempre acompa-
nhadas por pão lavash acabado de
sair do forno. Já Surian, acreditava
que Sisian era o centro do universo.
Mostrou-nos um documentário por
si realizado, dobrado em inglês pela
Ælha, em que explicava o esplendor
do seu paraíso rochoso. “Há vários
vestígios de que Sisian foi o centro
do desenvolvimento da espécie na
pré-história”, dizia. “Ouçam as
pedras. Aqui elas falam”.
Os mais controversos dos muitos
pedregulhos da província estão à
entrada da cidade. É um conjunto de
megálitos conhecido como o “Sto-
nehenge arménio” – Zorats Karer,
para os locais. Ninguém sabe bem
quem o fez e com que propósito; há
estudos que o identiÆcam como uma
necrópole pré-histórica, outros que
dizem que servia para guardar ani-


mais e ainda os que acreditam tratar-
se de um observatório astronómico
primitivo. Esta última tese é susten-
tada pelo facto de 84 dos 223 menires
terem um buraco no topo, que
alguns investigadores acreditam
estar alinhados com as estrelas. Indi-
ferente às explicações, a Lia enÆou-
se por baixo dos pedregulhos e apa-
receu logo um guia a gritar que ali
havia cobras. Assim que lhe expli-
quei, desatou a fugir.
Fomos parar à magníÆca cascata
de Shaki, um declive de 18 metros
que cospe abundantemente a água
do rio Vorotan. Na Arménia, mais do
que na Geórgia, os turistas ainda são
alvo de interesse. Por isso, uma famí-
lia sentada numa pequena ilhota no
cimo da cascata convidou-nos para
um piquenique de queijo branco e
pistachos.
Rumo a Sul, pudemos constatar a
beleza arrebatadora da província de
Syunik, que nos meses quentes veste
as suas serras de Çores amarelas e
lilases e de pasto verde. Na estrada,

trepar umas saliências na rocha para
entrar num buraco no tecto que ia
dar ao piso de cima. E, na verdade,
era assim, com recurso a escadas,
que os antigos moradores acediam
aos seus lares.
Como se a ponte não tivesse já
preenchido os requisitos de adrena-
lina, embarcámos no teleférico mais
longo do mundo rumo ao Mosteiro
de Tatev, uma preciosidade milenar
debruçada na montanha. As “Asas
de Tatev” - assim foi baptizado o
transporte suspenso a mais de 300
metros de altura – percorrem os
5,7km que passam por claustros em
ruínas, estradas serpenteadas e pela
Ponte do Diabo, um tabuleiro escul-
pido pela natureza sobre o Vorotan.
Tatev foi o coração da universidade
mais avançada da Idade Média em
toda a região e, em 1920, um con-
gresso ali celebrado assinalou o pri-
meiro ensaio da independência do
país. O Cáucaso é, contudo, uma
área volátil. A República Montanho-
sa da Arménia durou apenas seis

o campeão é o velho Lada, um auto-
móvel do tempo da URSS que na
Arménia ainda é encontrado nas
mais variadas versões: sublimemen-
te renovado, pintado de laranja cós-
mico, partido, todo partido ou 4x4.
Na aldeia abandonada de Khndzo-
resk, perto de Goris, tivemos de atra-
vessar uma ponte suspensa ao estilo
de Indiana Jones. Optámos por não
olhar para baixo para não termos de
enfrentar as entranhas do desÆladei-
ro. Do outro lado, centenas de orifí-
cios cavados nas rochas, antigos
domicílios daquela que outrora foi a
povoação mais importante do Sudes-
te arménio; 15 mil pessoas viveram
nas profundezas da serra até que, em
1950, o regime estalinista despejou
toda a gente por falta de condições.
Havia escolas, empregos e até uma
igreja que subsiste. No Cáucaso, as
igrejas são indestrutíveis. A Lia ado-
rou explorar aquelas casas primiti-
vas, imaginando como seria viver ali
e onde funcionaria cada divisão. A
dada altura, apanhámo-la a tentar

Em baixo, pães de ervas
e o mercado de Stepanakert,
Nagorno-Karabakh;
na página ao lado, os qvevris
onde se faz o vinho arménio
e a ponte suspensa de
Khndzoresk, no Sul do país
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