Público - 05.10.2019

(nextflipdebug5) #1
Sábado, 5 de Outubro de 2019 | FUGAS | 11

legado arménio na região, Ægurando
um casal típico das montanhas com
elementos das suas vestes. E, simul-
taneamente, o monumento mais
odiado no Azerbaijão.
O plano era passar por Shusha
rumo ao canhão de Hunot para com-
pletar a jornada. Mas foi nessa cidade
martirizada pelo conÇito que as coi-
sas azedaram. Quando vi uma pessoa,
imagem rara, abandonei o carro para
lhe perguntar direcções para o desÆ#
ladeiro. Não podia prever que um
rapaz ia sair em marcha-atrás de uma
garagem e embater no nosso Micra
alugado. A matrícula caiu e havia um
risco marcado. O condutor era um
miúdo com farda militar, sandálias e
bastante bêbedo. De repente, apare-
ceram dezenas de adolescentes onde
minutos antes não se ouvia sequer
uma mosca. Nós estávamos preocu-
pados com o que teríamos de pagar
na entrega do carro em Ierevan. A Ilka
sugeriu chamar a polícia e recebeu a
melhor das respostas, num inglês
rudimentar: “A polícia vem, ele paga,
tu pagas, todos pagam.” Duas horas
depois, o imbróglio resolveu-se: um
dos rapazes ligou para a agência, deu-
se como culpado para ilibar o amigo
embriagado e fez um acordo de cava-
lheiros com a empresa. Só de palavra,
nada de papéis, porque aqui a honra
ainda vale muito. Abraçámo-nos
todos e ainda fomos convidados para
um shot de vodka. Mas a Ilka já só que-
ria sair de Karabakh.
Tomámos a estrada junto à frontei-
ra com o Azerbaijão, que desÆla por
uma planície desértica e desoladora,
embora bela, com cidades fortiÆcadas
plantadas no topo de montes de terra
ocre. Colunas de tanques passavam
por nós e outras alinhavam-se na ber-
ma com os canos apontados para
território inimigo. A norte, esta pai-
sagem foi subitamente substituída
por um verde pujante e por elevações
majestosas e, quando a Lia acordou,
estávamos a 3000m prestes a tocar
nas nuvens, e também eu acreditava
que íamos conseguir lá chegar. Foi
quando começámos a descer e
desembocámos no maior lago do
Cáucaso, o Sevan, onde nos banhá-
mos aos pés do pitoresco Mosteiro de
Hayravank.
De regresso a Tbilissi, no restauran-
te Mapshalia, onde comemos e bebe-
mos tudo o que havia na carta por
menos de 20 euros, recordei-me de
todos os ensinamentos que recebera
durante o último mês e senti o dever
de assumir o papel de mestre-de-ce-
rimónias. Levantei-me, ergui o meu
vinho âmbar de 8000 anos e bradei
o último brinde: “Aos encantos do
Cáucaso e das suas gentes, até ao nos-
so regresso.”

meses até ter sido engolida pelos
bolcheviques.
Surian e Julieta esperavam-nos
para um jantar de despedida. Desta
vez, para mal dos meus pecados,
Surian tinha trazido a sua vodka e fez
questão de ensaiar dezenas de brin-
des. Ao 12.º, fui convidado a assumir
o lugar de tamada e brindei a Julieta,
que tão bem nos tinha recebido.
Surian interrompeu-me: “Vamos
antes brindar à nossa potência, que
seja tão grande como as montanhas
de Sisian”, disse. Quase me engas-
guei, mas bebi aquele elixir de virili-
dade. Julieta sorriu com um ar tro-


cista. Ilka, Lia e Julia brincavam com
uma trotineta. Acabámos todos a
dançar ao som de pop arménio.

Nagorno-Kharabakh, 3700m
O país que não existe

Sou teimoso, é um facto. E tinha meti-
do na cabeça que nas últimas 48 horas
na Arménia devíamos entrar em
Nagorno-Karabakh, um país ardua-
mente disputado entre a Arménia e o
Azerbaijão, cuja independência não
é reconhecida por ninguém. Mas a
Ilka precisava de trabalhar – dá aulas
de alemão através da Internet – e

complexa. Durante a URSS, Estaline
decidiu que aquele território perten-
cia à região administrativa do Azer-
baijão, uma decisão polémica, uma
vez que ali viviam arménios cristãos
e azeris muçulmanos em números
idênticos. Desfeito o império, em
Ænais dos anos 1980, a Arménia recla-
mou para si aquele território mas o
Azerbaijão não facilitou. Seguiu-se
uma guerra terrível com imensas bai-
xas para ambos os lados. O cessar-fo-
go foi em 1994 mas as duas nações
nunca celebraram um acordo de paz,
estando tecnicamente em conÇito até
hoje. Aliás, em 2016, novas hostilida-
des provocaram 300 mortos.
Um terrível conto que bateu certo
com as primeiras impressões: aldeias
praticamente abandonadas e tanques
expostos pelos montes. Amiúde, foto-
graÆas bélicas exibidas no meio de
nenhures. Mas com uma envolvência
natural maravilhosa.
Stepanakert (Xankendi, em azderi),
a capital, é diferente. Nunca foi atin-
gida pelos confrontos. Ficámos no
bed an breakfast de RaÆq e Carine, por
indicação de Carlos Carneiro, guia da
Nomad para a Arménia. Deve estar a
fazer um bom trabalho porque assim
que lhe falei dele, RaÆq ofereceu-nos
um desconto.
A Ilka trabalhava nessa noite e a
Internet estava mais lenta que um
caracol. Teve de abortar as aulas e
Æcou furiosa. Com razão. Eu procurei
refúgio no quintal onde RaÆq estava
a beber uns copos com um guia de
viagens e com um mancebo. O guia
enaltecia a Arménia e dizia que as suas
gentes mais virtuosas, simpáticas e
genuínas residiam em Karabakh. O
militar, de 19 anos, era de Ierevan,
estava ali na recruta e sentia-se muito
orgulhoso das suas funções. Éramos
três mas havia vodka e cerveja para
um regimento. RaÆq, numa tirada
comum por estas bandas, culpava
Estaline de todo o caos no país.
Pela manhã, a Ilka já estava confor-
mada. Passámos pelo Parlamento e
por um par de museus de guerra.
Depois, o mercado, em que as estrelas
são os zhingalov khats, pães achatados
com ervas, tantos verdes que não se
podem contar. São cozidos na hora.
E, acreditem, nunca comerão um pão
só com ervas tão delicioso como este
de Stepanaket. A julgar pelo mercado,
apesar do isolamento, os habitantes
da República de Artsakh (designação
independentista de Karabakh) não
têm falta de mantimentos.
A nossa volta matinal terminou no
postal da cidade – pelo menos, para
os arménios -, a estátua “Nós somos
as montanhas”, ou. (“Avó e avô),
como também é conhecida. É uma
imponente escultura que simboliza o

Surian e Julieta


esperavam-nos


para um jantar


de despedida.


Surian tinha


a sua vodka


e fez questão de


ensaiar dezenas


de brindes


vários sites alertavam para a inope-
rância da rede em Karabakh. Ainda
assim, apelei à aventura e, contabili-
zando o voto da Lia para o meu lado,
lá consegui convencer a minha com-
panheira. Viva a democracia.
Diria que só a aproximação à raia
de Karabakh valeu a pena; é um ocea-
no de maciços pontiagudos, austeros,
negros, ao estilo de Mordor em O
Senhor dos Anéis. Na fronteira, três
guardas e 30 minutos para obter o
visto, gratuito. Até a Lia foi obrigada
a assinar os documentos migratórios.
Fez um traço.
A história do país que não existe é
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