Sábado, 5 de Outubro de 2019 | FUGAS | 13
Pedro Ferreira
A “arqueologia instrumental”
a Os dias passam-se como numa
espécie de Viagem à Volta do Meu
Quarto, o livro de Xavier de Maistre
em que todas as incursões
acontecem naquele espaço
fechado, fazendo crer que grandes
viagens não implicam grandes
deslocações. Aqui, no entanto, não
há o tom satírico e, em vez da mesa
e materiais de escrita, Pedro
Ferreira alonga o tempo em pé, à
volta de três eixos: a madeira, as
ferramentas e o som. É com eles
que constrói instrumentos de
música, sobretudo antigos e muitas
vezes que apenas existem nos
livros, a pedido de quem os quer
resgatar de um formato inanimado,
fazendo-os tocar novamente.
Nesta cave indistinta de São
Domingos de BenÆca, “Itálias” em
clavicórdio e harpas irlandesas
voam para o presente, sob o ruído
de serras e lixas, e de troncos
cavados em bruto. Uma tarefa de
ressuscitação. Uma vez
terminadas, já depois do gesto
decorativo – muito de pincel e com
recurso a pigmentos utilizados
noutras épocas – de Rita Roberto, a
companheira de Pedro, as
encomendas seguem para países
como Espanha, Noruega ou o
Japão. “Às vezes trocámos
mensagens para saber como vai o
instrumento. Pode parecer
estranho, mas eles vão mudando e
só passado um tempo é que
atingem um determinado som”,
explica o construtor.
Formado em Belas Artes, em
Lisboa, e com aulas de guitarra e de
acordeão no percurso, Pedro
Ferreira sempre teve “tendência”
para aprender sozinho.
“Demora-se mais tempo mas
descobrem-se outras coisas.
Chega-se a outro entendimento do
som”, diz o artesão, que trabalha
há mais de dez anos nesta área, em
torno daquilo que considera ser
uma “arqueologia instrumental”,
já que cada processo se inicia numa
longa investigação, através de
documentos, referências,
fotograÆas e radiograÆas
maioritariamente recolhidos de
museus de música europeus.
“Estas harpas são das coisas mais
incríveis que já Æz”, exempliÆca. “É
Resposta rápida
Quantos instrumentos
faz por ano?
São sempre poucos, porque
levam muito tempo a fazer e
também porque quero
construí-los lentamente. Mas
consigo fazer quatro harpas num
ano. Já um cravo [o instrumento
mais complexo do “catálogo”]
pode levar um ano completo.
Este trabalho implica
voltar ao tempo original
dos instrumentos?
O ritmo lento faz parte da minha
maneira de trabalhar. Depois, é
fazer de acordo com um género,
uma época e uma região,
tentando que o instrumento saia
o mais verosímil possível, ou
seja, [fazendo acreditar] que
aquele instrumento poderia ter
sido construído naquela altura.
Isso acontece muito no trabalho
[de decoração] da Rita
[Roberto], até porque ela usa
materiais, pigmentos, que não se
utilizam hoje. Só isso é um
universo.
De onde chega a maior
parte das encomendas?
Já recebi encomendas de
Espanha, França, Irlanda, Brasil
ou Estados Unidos. E vou ter de
outros países. O mais longe até
hoje foi o Japão, de um homem
que queria um órgão regal, do
século XVI. Também já fiz uma
viola da gamba para um músico
da Noruega de blues e jazz, que
vinha do contrabaixo e que tinha
mudado de vida e estava a
reparar um barco à vela para
viajar pelo Mediterrâneo com um
grupo de pessoas. Com este
trabalho, também acontece isso:
conhecem-se pessoas muito
especiais.
um símbolo nacional da Irlanda,
que entretanto caiu em desuso e
agora eles querem tentar
recuperar. Em Fevereiro, fomos ao
museu estudá-la e, com a ajuda de
um scanner a laser, Æcámos com
uma foto em três dimensões do
original. Depois, foram meses de
levantamento de informação.” Só a
seguir vem o trabalho material,
para responder a duas
encomendas: uma da Irlanda do
Norte e outra do Brasil. É aí que os
braços se esticam até às madeiras
empilhadas do lado esquerdo do
atelier, todas de origem europeia,
muitas vezes portuguesa, numa
lógica de proximidade com a
matéria-prima, porque “não há
necessidade de recorrer a madeiras
exóticas, como se fazia
antigamente.”
Como em Portugal não há
público suÆciente para alimentar
este nicho, foi fora de portas que o
atelier ganhou força. Por várias
pontes, Pedro foi construindo uma
rede e hoje recebe encomendas do
Brasil, Estados Unidos, Japão,
França, Espanha ou Irlanda, como
o virginal italiano inspirado num
original do século XVI, em
desenvolvimento junto às
ferramentas. É uma espécie de
cravo que vive assim que se movem
os saltarelos, pequenas peças de
madeira que se cortam
minuciosamente e que vão ser o
elo de ligação entre as teclas e as
cordas. “Este é para um senhor
alemão que vive no Sul de França”
e está a ganhar forma, entre cortes
e colagens, a partir de uma planta
vinda do Museu de Música de
Leipzig, na Alemanha. Pode
demorar um ano a ser feito. Pedro
até poderia ser mais rápido, mas
escolheu a lentidão como ritmo
para encaixar a música.
O mais longe onde até hoje
chegaram os instrumentos do
Atelier Rumor foi o Japão, até à
casa de “um homem que tinha a
música como hobby” e que “queria
um órgão regal”, um instrumento
particularmente utilizado no
contexto religioso ou por músicos
itinerantes no século XVI, dada a
facilidade de transporte, mas que a
partir das mãos de Pedro Ferreira
ganha um novo enquadramento. A
ideia, aliás, nunca é “fazer uma
réplica”. “Cada instrumento é
diferente”, tanto no aspecto, como
som, no toque, partindo da
identidade de um lugar e de um
tempo. “É por isso que não faz
sentido pensar nisto numa lógica
industrial.”
Ouvindo a reverberação clássica
do clavicórdio ou olhando para as
plainas, grampos, lixas, goivas e
formões, pode parecer que
estamos na gruta de um carpinteiro
do século XVII, mas dando a volta
pelos fundos dois compartimentos
desmancham esta ideia de viagem
ao Barroco. Um tem um
computador onde Pedro estuda e
desenha órgãos e violas da gamba –
uma espécie de híbrido do
violoncelo com o alaúde,
desenvolvido no século XV e que
tem como marca estética a
escultura de uma cabeça no
extremo do cravelhal –, entre
outros instrumentos; outro é um
estúdio de gravação, onde mistura
os acordes do seu clavicórdio com
o zunido de uma taça de vidro, já
para não falar de samples
sintetizados.
“Também me interessa muito a
música electrónica”, esclarece
Pedro. Não será de estranhar, até,
se no futuro o quotidiano do Atelier
Rumor (assim se chama) siga uma
trajectória diferente, com a
construção de instrumentos
completamente novos, sem nome,
sem predeÆnição e sem fronteiras
entre o analógico e o digital. “Para
mim não há uma divisão de tempo
na questão do som”, mas apenas
diferentes potencialidades, aÆrma
o artesão.
FOTOS: PEDRO FAZERES
Rute Barbedo
Protagonista
?
de