Público - 05.10.2019

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22 | FUGAS | Sábado, 5 de Outubro de 2019


Egoísta


FOTOS: DR

À mesa com


o abade de Priscos


a “Homem de grande paladar”, como
o deÆniam os seus conterrâneos, a
Ægura do celebrado abade de Priscos
voltou a patrocinar um memorável
jantar na Póvoa de Varzim. Agora já
sem as reais presenças, mas com o
propósito de recriar o mítico banque-
te que há 132 anos, no dia 3 de Outubro
de 1887, preparou para a comitiva real
por altura da visita do rei D. Luís.
Um banquete cujo menu serviu
como guião para levar agora à mesa
do restaurante Egoísta os mesmos
produtos e ingredientes, numa rigoro-
sa execução culinária conduzida pelo
chef Hermínio Costa. Consomé de per-
diz, paté de caça, pescada da Póvoa,
codorniz e filet de boi, mas também as
trufas, o foie gras e toda a envolvência
clássica e elegante da cozinha france-
sa. Até os vinhos das mesmas regiões
de Champanhe, Madeira, Sauternes,
Colares, Bordéus e Porto.
Dos dez pratos então servidos à
comitiva, Hermínio Costa saltou os
rotis, concentrando em cinco momen-
tos o repasto, igualmente memorável
e também com geleia de morangos e


ciou o pain de foie (brioche) e o
foie gras que foram apresentados no
menu original, servidos na compa-
nhia de um grandíssimo Sauternes
2010, Châteaux Les Justices.
Já o “poisson à la Póvoa de Varzim”
ofereceu um suculento e aveludado
lombo de pescada, de brancura ima-
culada e textura tão delicada que
apetecia sorver em vez de mastigar.
Mais que mistério, é um escândalo
que esta delícia poveira tenha prati-
camente desaparecido da restaura-
ção. Hermínio Costa serviu-a com
alcaparras, couve-Çor e um aveluda-
do com natas e leve travo a cognac.
Para o “salmis de Cailles aux trufes
de Périgord” do menu do abade, o
chef fez acompanhar a codorniz por
cogumelos e lâminas de trufa negra.
Um jus tostado e um polvilhado com
nougat a criar o efeito da pinhoada
compunham o prato. Num elegante
corte e empratamento, o “filet de
boeuf” com um demi-glace à base de
Porto tinha a companhia de minice-
noura, cebola, espargo e ervilha.
Das “entremets sucrées”, compota
e geleia de morango de sabor, textura,
consistência e elasticidade exempla-
res. Mesmo não constando do menu
servido em 1887, o abade de Priscos
teria aplaudido os minipudins que
também foram servidos em jeito de
complemento. Uma espécie de enco-
re, como acontece nos concerto que
terminam em apoteose. Para seguir a
receita original foram usadas formas
em cobre (as dos canelé) e isso, é ver-
dade, faz mesmo toda a diferença.

para exposição durante o jantar.
Enquadrado no ciclo “Conferências
do Casino”, que durante um ano assi-
nala o 10.º aniversário do Egoísta com
a recriação 10 grandes refeições histó-
ricas em Portugal, no banquete que em
Ænais de Setembro aconteceu Fortuna-
to da Câmara explicou como em 1887
foi tudo mesmo à grande e à francesa.
E nem só porque até o menu foi redi-
gido em francês. Oriundo de uma famí-
lia de posses, de Vila Verde, o abade de
Priscos era um exímio e criativo segui-
dor da alta cozinha francesa. Produtos,
técnicas culinárias e até o requinte da
decoração e apresentação.
Ele próprio executou os arranjos
Çorais, alugou as mais de 700 peças
de louças e cristais e adquiriu os pro-
dutos com que preparou o banquete
para os 54 convidados. Também a
conta Ænal de 473 mil reis de despesas
representou para época um verdadei-
ro luxo francês.
Quanto ao jantar de 2019, o luxo foi
poder saborear o consomé de perdiz
cujo brilho e limpidez (clariÆcado
com cebola e claras) ligava até com os
tons dourados e de castanho brilhan-
te do Sercial Madeira. Soberbo tam-
bém o paté de caça, a que o chef asso-

Egoísta
Edifício do Casino da Póvoa
4490-403 Póvoa de Varzim
Tel.: 252 690 888
http://www.restauranteegoista.com
Estacionamento: parque próprio
Horário: de quarta a sábado,
das 20h às 22h30.

i


José Augusto Moreira


A Fugas participou no jantar
a convite do Casino da Póvoa

bolo bretão nas sobremesas.
A diferença substancial acabou por
estar no delicioso pudim de ovos cria-
do pelo abade, que não fez parte do
menu original mas foi agora servido
(pois claro!) como complemento em
minidoses. Curioso é que o histórico
banquete de Ænais do século XIX é
sobretudo conhecido pelo episódio
da palha que o abade-cozinheiro usa-
ria na receita do pudim.
Foi, segundo se conta, impressio-
nado com a qualidade e sumptuosi-
dade do banquete que o Rei quis
conhecer o cozinheiro, tendo-o ques-
tionado: “Então você serve palha ao
seu Rei? Todos comem palha majes-
tade, o segredo é saber dá-la.” O diá-
logo pode até nem ser rigoroso, mas
foi seguramente a partir dele que se
tornaram sobretudo conhecidos os
extraordinários dotes culinários do
abade e famoso o pudim.
E mesmo que não tenha feito parte
do menu do banquete poveiro origi-
nal, já por esses dias teria sido servido
em Braga, onde a comitiva real esteve
alojada “durante a viagem de el-Rei e
da família real ao Norte do reino”.
Um périplo de várias semanas,
segundo antecipava na altura a Occi-

dente - Revista Illustrada de Portugal e
do Extrangeiro. “Essa viagem que traz
alvoraçadas todas as povoações por
onde os augustos viajantes e reaes
touristes tencionam passar, com os
preparativos das festas brilhantes
projectadas para a recepção.” Um
percurso centrado “em Braga, e prin-
cipalmente no Bom Jesus, d’onde
suas magestades e altezas farão seu
quartel-general”, e que incluía “a
Póvoa de Varzim, a mais formosa
praia de Portugal”.
Preparativos que incluíram a incum-
bência ao abade de Priscos de prepa-
rar todos os pormenores relacionados
com o banquete poveiro, o que fez
sem se poupar a esforços ou olhar a
meios, segundo Fortunato da Câmara,
autor do livro Os Mistérios do Abade de
Priscos e do vasto trabalho de investi-
gação e pesquisa que lhe deu origem
e serviu de base a esta recriação de
Hermínio Costa e do Egoísta.
Desde logo o menu original, com
apontamentos do próprio padre
Manuel Joaquim Machado Rebelo, o
abade de Priscos, várias peças de lou-
ça e até a forma original de cobre do
pudim, do século XIX, que estão na
posse de seus familiares e cederam
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